A língua que falamos hoje em dia na Galiza, em Portugal, no Brasil, em diversos países africanos e em Timor Lorosae, tivo o seu lugar de nascimento na zona que compreende a Galiza actual e a regiom Norte de Portugal, quer dizer, a faixa ocidental da antiga Gallaecia. Com a Reconquista e o avanço geral dos reinos cristãos sobre as terras do sul a fala estendeu-se polo actual território português até ao Algarve, ocupando todo o poente da Península Ibérica.
Os séculos seguintes som testemunhas dumha grande expansom ultramarina do estado português e do estabelecimento da língua nas amplas regiões do mundo em que ainda perdura, fazendo dela actualmente um dos maiores idiomas polo número de usuários e um dos ramos mais frondosos da antiga árvore indo-europeia.
Mas no lar originário a situaçom nem foi sempre tam favorável. A pertença ao Reino de Leom primeiro e ao de Castela depois provocou que tanto na Galiza como em Portugal se tenham percebido influências e agressões desde o primeiro momento, das quais Portugal só se verá realmente livre após o ano 1640. À Galiza, no entanto, correspondeu diversa sorte. Desde o início incorporarom-se numerosos castelhanismos no léxico habitual e a língua no seu conjunto viu-se “atraída” polo castelhano. Assim, palavras como Deus, igreja, só, verdade… passarom a Dios, iglesia, solo, verdá… iniciando-se um processo de substituiçom que ainda hoje continua ameaçando gravemente o galego falado. No plano fonético e fonológico há decerto motivos para suspeitar que a apariçom e posterior expansom do fonema |Θ| em boa parte do galego actual, procedente das antigas africadas prepalatais da língua medieval, tenha sido também propiciada polo modelo castelhano, entre outras cousas.
Coincidindo com estes primeiros sintomas graves de agressom externa ao galego (séc.XV), propiciados fundamentalmente pola decapitaçom social que supujo o processo de “Doma y castración del Reino de Galicia”, de que falava o cronista dos Reis Católicos Alonso de Zurita, deu começo um processo de substituiçom linguística que provocou que, ao princípio devagar, e, depois, já no século XX, mais generalizadamente, o galego fosse substituído nas cidades polo espanhol. Este fenómeno é, se calhar, mais grave levando em conta a forte perda demográfica que o campo experimentou e continua a experimentar nos últimos anos.
Actualmente, o galego continua a ser língua inicial maioritária no conjunto da populaçom (62,4%), mas em situaçom de franca recessom nas cidades (17,1%) e entre os jovens (só 38.9% entre os que tenhem 16 e 20 anos o aprenderom como primeiro idioma). Desta maneira, o galego vai ficando cada vez mais como marca de pertença às classes sociais mais desfavorecidas e, portanto, estigmatizado como língua pobre. Toda esta situaçom parece tam negativa que se nom houvesse algumha força que a contrapesasse teríamos que começar a pensar logo na morte do galego, tal como aconteceu com outras línguas que, como o dálmata ou o córnico, forom deixadas de falar e se perderom para sempre.
Porém, a nossa situaçom parece ainda diferente. Com a queda, no Estado Espanhol, da ditadura militar do general Franco, acontecida no ano 1975, abriu-se um processo que acabou com a criaçom dum governo autónomo na Galiza e a cooficializaçom relativa do idioma. O galego passa a incorporar-se ao mundo do ensino, acede aos meios de comunicaçom e pouco a pouco vai estendendo-se ou aspirando a estender-se a todas as esferas da sociedade.
Mas voltemos atrás, aprofundando mais nos factores que determinarom a situaçom actual: Entre os séculos XVI e XVIII, os Séculos Obscuros, o galego é umha língua ágrafa que se conserva só como fala oral e abandonada às tendências peculiares de cada lugar. Nom existe um referente culto, um padrom linguístico que evite a fragmentaçom e a dialectalizaçom da língua. Quando recupera o seu estatuto de língua escrita, com o grande renascer literário do séc. XIX (Rosália de Castro, Curros Enríquez, Eduardo Pondal…) percebe-se claramente a necessidade de uniformar, polo menos, os usos escritos. Naquela altura, cada escritor reflectia mediante a ortografia espanhola que conhecia e em que o povo estava alfabetizado (quando o estava), a fala da sua zona. Desde entom, a escrita do galego vai-se caracterizar polo caos, as soluções contraditórias e os influxos mais díspares. No seio desse movimento galeguista houvo sempre duas tendências enfrentadas a respeito de como deveriam ser restituídos os registros cultos que o galego tinha perdido ao ficar marginalizado como língua rural e familiar. E, embora praticamente todas as grandes figuras do galeguismo (Castelao, Murguía, Pondal, Viqueira…, etc.) tivessem manifestado sempre a sua vontade de que a padronizaçom do galego se figesse no sentido da reaproximaçom a respeito do luso-brasileiro, como se pode comprovar facilmente no artigo desta secçom, Falam os Mestres, as difíceis condições em que tivo que desenvolver-se nos seus inícios a cultura galega surgida do Rexurdimento, com o analfabetismo generalizado da maioria da populaçom e a ausência dum público leitor que nom tivesse sido escolarizado em espanhol, determinou que se tenha gerado umha tradiçom escrita que consagra umha variedade de língua mista ou híbrida que, sem perder os numerosos traços comuns com o português, baseou-se sobretudo no castelhano para a improvisaçom dos registros cultos. Isto, unido especialmente ao uso da ortografia castelhana, provocou que para algumhas pessoas parecesse justificado falar de umha língua diferente do português.
Quando a mudança política, nos anos setenta, trouxo consigo a cooficializaçom do galego na Galiza administrativa (também é língua própria de comarcas limítrofes de Astúrias, Leom e Samora onde a sua oficialidade nom é ainda reconhecida), o debate em torno ao modelo de língua culta cobrará novos impulsos, pois as novas condições (entrada no ensino como matéria obligatória e início dum processo de normalizaçom linguística) já permitem finalmente o velho sonho galeguista de aproximaçom ao português, com todas as consequências de internacionalizaçom, prestígio e abertura de possibilidades de intercâmbio cultural que isso traria consigo. Nestes anos tem lugar um intenso debate entre isolacionistas ¾partidiarios de criar umha língua a meio caminho entre português e castelhano¾ e reintegracionistas ¾partidários de consolidar a velha ideia da reintegraçom no diassistema do galego-português¾.
Os primeiros, aglutinados em torno ao Instituto da Língua Galega (ILG), partem dumha perspectiva descritivista e exclusivamente baseada na experiência fornecida polos trabalhos de tipo dialectológico, o que os leva a pretender consolidar umha normativa baseada “na realidade da fala viva”, sem reparar demasiado nem em como deve definir-se a “fala viva”, nem nas garantias de legitimidade que tal opçom oferece, nem ainda nos instrumentos empregados para reflectir essa “fala viva”, pois assume-se desde o início que a escrita e as estruturas do castelhano som o mecanismo apropriado para reflectir “por omissom” a realidade falada do galego. Dessa maneira, aplica-se à nossa língua o mesmo esquema de padronizaçom que corresponderia a umha fala ágrafa, sem qualquer tradiçom própria anterior ao momento da “amostragem”. Consideram-se os falantes que oferecem melhores garantias de legitimidade “os mais velhos de cada lugar”, desconsiderando por completo tanto os registros e referências históricas à fala usada por gerações anteriores (presumivelmente mais legítimos que os dos informantes “mais velhos de cada lugar”) como a fala usada no momento polas gerações mais novas, muito mais “viva” que a dos “mais velhos de cada lugar”. Procedeu-se, desse modo, a seleccionar mediante critérios completamente arbitrários, caprichosos e incoerentes umha categoria de informantes que nom oferecem nem as mesmas garantias de legitimidade e correcçom que se poderiam obter facilmente acudindo a toda a tradiçom prévia, tanto gramatical como literária, nem umha radiografia do que é a “fala viva” real. Além disso, empregou-se a escrita do castelhano como instrumento para representar essa suposta “fala viva”, adoptando-se também o castelhano como modelo para preencher muitas das lacunas de que os informantes assim seleccionados nom podiam dar conta.
É dessa maneira como a orientaçom dialectológica com que o ILG tinha sido criado e a carência de critérios científicos adequados propiciarom um modelo de normativizaçom caracterizado pola incoerência e polo submetimento ao castelhano, pois adoptou-se para criar umha norma para o galego os mesmos critérios que corresponde usar para a descriçom de línguas ágrafas, sem tradiçom escrita nem gramatical prévia ao momento da recolha dos dados.
O reintegracionismo, polo contrário, encabeçado pola figura do Professor Ricardo Carvalho Calero, parte da consideraçom do galego como entidade linguística inserida no seu diassistema histórico. Isto implica levar em conta a tradiçom precedente e propor um modelo de língua apto para a comunicaçom com as outras variedades do diassistema. Além disso, a norma proposta polo reintegracionismo carece dessa vontade de confluência formal a respeito do castelhano, que é justamente a língua dominante na situaçom de contacto linguístico, responsável polas numerosas interferências introduzidas no galego.
O debate entre isolacionismo e reintegracionismo pretendeu ser resolvido de um modo expeditivo e obscuro por parte das autoridades autonómicas no ano 1982, mediante a oficializaçom por decreto de umha proposta normativa surgida da primera das tendências. No entanto, nos anos posteriores, o debate, em vez de extinguir-se, passou a converter-se num verdadeiro confronto, levando-se à frente numerosos actos de protesto e culminando o que nom se conseguira realizar nas etapas precedentes: a consolidaçom dumha tradiçom e um padrom culto galego em escrita galego-portuguesa, paralelo ao promovido pola Administraçom Autonómica e que situa o galego como umha variedade linguística autónoma da língua galego-portuguesa, ao mesmo nível que o brasileiro e o português.
Por parte da administraçom autonómica sobretudo, e também de alguns “galeguistas”, existiu desde o primeiro momento umha atitude de menosprezo e umha política de silenciamento para a opçom reintegracionista. Inclusive forom denunciadas perseguições ideológicas ante o Parlamento Europeu. Nom aconteceu o mesmo, porém, com a Administración de Justiça, que, apesar de ter ignorado a miúdo estes factos, procedeu a reconhecer finalmente, num auto emitido polo Tribunal Superior de Justiça de Galiza, a validade oficial da norma reintegracionista do galego (em sentença 1998/1998). Também a maior parte da intelectualidade galega, usuária eventual de umha ou outra normativa, manifestou-se a favor da re-aproximaçom ao português num debate que continua mais vivo que nunca e que tivo ocasiom de manifestar-se ao longo de vários meses nas páginas centrais dos principais diários galegos no ano 1999 (vid. na rev. Agália, nº59 e nº60 umha ampla selecçom daqueles artigos).
Actualmente, pois, pode considerar-se o galego como umha variedade linguística polielaborada, na qual um dos modelos de padronizaçom levados a cabo, o reintegracionista, representa a reincorporaçom definitiva do galego ao seu diassistema linguístico próprio, constituindo-se, assim, a variedade galega da língua galego-portuguesa. No entanto, o outro modelo de elaboraçom, o isolacionista, apresentado como embriom dumha “língua galega diferenciada do português”, constitui na realidade a aceitaçom histórica do processo de submetimento ao castelhano e representa um grave perigo para a sobrevivência do galego no quadro do conflito linguístico em que se acha inserido. Esta é também a razom que explica justamente a preferência do poder político actual, herdeiro “democrático” do mesmo poder político que prejudicou historicamente o galego, polo isolacionismo linguístico.