Jéssica Azevedo: “Feminizar de verdade seria ter uma alta percentagem de mulheres ao mando, dar-lhes uma oportunidade para que possam demonstrar do que são capazes”

Jéssica nasceu no Brasil e mora desde a adolescência na Galiza. Na atualidade estuda na Faculdade de Filologia um mestrado de Estudos de Género. Tem um fraco para meditar sobre feminismo, galeguidade e discurso pós colonialista. Sente empatia polas pessoas que decidem não tirar o pé do sistema.

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Sabias, antes de vires, da existência do galego? Como contemplavas as falas galegas quando eras uma rapariga recém chegada?

Lembro que antes de vir para aqui minha mãe tinha me comentado sobre a existência de vários idiomas na Espanha, e que neste lugar onde íamos morar o pessoal falava galego. Antes disso nunca tinha ouvido falar da língua galega, até porque ‘galego’ no Brasil é uma pessoa de olhos e cabelos claros.

Achas que a sociedade galega é aberta, que recebe bem os estrangeiros? Numa vila como Cee há preconceitos sobre as pessoas no que diz respeito a sua estrangeiridade?

Não gosto de trivializar essas questões, acho que existe de fato pessoas pra tudo; e no caso da receptividade eu tive algumas experiências boas e outras nem tanto, mas prefiro guardar o positivo e tentar mudar o negativo. Em Cee, ao meu pesar, existe um preconceito amplo. Eu notei ele muito forte na minha adolescência, a minha irmã pequena notou ele desde o colégio de primária e a minha mãe trata com isso frequentemente.

Que significou para ti aprender a escrever em galego ILGA e desaprender a escrever segundo a alfabetização que recebeste?

Para dizer a verdade, eu acho que nunca cheguei a um ponto de desaprender a grafia que eu já tinha aprendido. Quando cheguei aqui, em poucos meses tive que aprender tanto o espanhol como o galego, e para mim naquela época era uma tarefa a mais. Às vezes via muitos parecidos, achava muitas coisas engraçadas, e sempre ouvia me dizerem que para mim tinha que ser mais fácil o galego pelo seu parecido com o português. E foi, só que apenas na oralidade porque nalgum momento eu me senti muito limitada quando escrevia em galego; achava difícil, não encontrava apoio, tive muitas valorações negativas, e acabei pensando realmente que não sabia me expressar em galego. A minha moral com o galego melhorou muito quando conheci o reintegracionismo.

Como estudante dum mestrado de Estudos de género, como avalias a sociedade galega? É mais ou menos machista do que outras?

Desde a minha ótica é um pouco complicado fazer essa valorização. Há diversos fatores que influem numa sociedade ou noutra para que um machismo seja maior ou menor, ou até mesmo poderia perguntar qual é a unidade de medida do machismo? Quais critérios se usam para fazer essa avaliação? Desde qual visão?

As sociedades brasileira e galega são regidas efetivamente por um sistema patriarcal onde as mulheres ficam sempre num segundo plano. Mas dentro da sociedade galega, eu, na minha condição de mulher, negra e estrangeira poderia dizer que sou vítima de uma dupla subordinação. Por quê? Porque ninguém confia no meu taco por ser mulher e muito menos por ser de fora. Pense que muitas pessoas olham estranhad@s para a minha mãe quando ela diz que sua filha tem uns estudos superiores tendo estudado aqui. Duvidam das minhas capacidades, das minhas habilidades. Além do mais, a mulher sul-americana sempre é vista como um objeto hipersexualizado: somos seres que têm como último objetivo vital ter uma comodidade econômica e que para isso vamos ter relações sexuais com quem seja. Os estereótipos são muitos quanto a essa questão e sempre estão relacionados com sexo e dinheiro. Quando eu me apresento como Jéssica, logo detrás vem a pergunta: E de onde você é? Quando escutam a palavra ‘brasileira’ a expressão facial até muda. Eu tenho observado muito isso porque com as minhas amigas que são galegas isso não acontece.

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Feminismo e reintegracionismo são movimentos de resistência. Achas que existem pontos ou estruturas argumentais comuns?

Sim! Tenho pensado muito sobre o feminismo, a galeguidade e o discurso pós colonialista. As relações entre opressão, exploração, e a situação de subordinação. Como o sistema está construído sobre essas velhas hierarquias, sobre velhas dicotomias de pólos positivos e pólos negativos, para que um setor tenha poder ou desfrute de uma posição privilegiada deve existir um outro setor dominado. Então no caso, as mulheres e a língua fazem parte deste segundo setor. O problema está agora identificado, sabemos quais são as principais eivas, mas também sabemos que Frantz Fanon identificou muito bem os porquês das sociedades, ou mesmo grupos sociais continuarem submergidos nos leitos da dominação. Quando se passa tanto tempo a sofrer uma situação opressora, a mesma se torna num universal, e com os reforços do sistema é naturalizada. Assim bem, a mulher sempre foi inferior porque é o natural e a língua está a morrer na Galiza como também é natural.

À vista disso, emergem estes movimentos para questionar a veracidade do discurso da natureza das coisas. Talvez não seja tão natural quanto nos disseram, cabe a possibilidade de certas intenções – que não são as melhores. Para o estado espanhol não traz benefícios que a nação galega se empodere com uma língua que não aceita mais ser absorvida pela língua da colônia. E para o sistema patriarcal o pior que pode acontecer é que as mulheres não queiram ser mais absorvidas pelos homens. No entanto, temos tão interiorizados esses valores culturais que às vezes ficar saindo um pouco do quadrado, tirar essa venda dos olhos dá bastante medo. Eu entendo perfeitamente quem decide não tirar o pé do sistema porque fora dele não existem garantias, não existe chão, é como pular de uma nave no meio do universo e cair nesse infinito. Mas, poxa, vale a pena!

Sempre falamos de que o reintegracionismo é um movimento masculinizado. Que estratégias poderiam usar-se para feminizar a AGAL?

Bom, eu não sei muito bem como funciona a AGAL, mas em vista do que tenho estudado sobre algumas empresas a solução normalmente não é só criar umas vagas para mulheres como fazem sempre. Esse assunto do politicamente correto de dizer que as empresas têm que ter um 40% de empregadas mulheres para que prospere a igualdade só faz com que nunca passe desse 40%. Portanto, feminizar de verdade um órgão como tal seria ter uma alta percentagem de mulheres ao mando, incentivá-las, contratá-las, dar-lhes uma oportunidade para que possam demonstrar do que são capazes, agora é a hora delas.

Que te motivou a te tornar sócia da AGAL. Que esperas da associação?

Decidi me comprometer um pouco mais com a Galiza. E o quê eu espero? Espero ao menos uma borracheira de vinho. Brincadeira. Espero encontrar apoio, descobrir, aprender, desfrutar, ajudar, conhecer, ser útil.

Como gostarias que fosse a “fotografia linguística” da Galiza em 2040?

Daqui uns 20 anos? Só espero que não seja como eu penso que vai ser tendo em conta a situação atual.

 

Conhecendo Jéssica Azevedo:

Um sítio web: Tumblr

Um invento: O chuveiro

Uma música: “Índios” da Legião Urbana

Um livro: “The Great Gatsby” De Scott Fitzgerald

Um facto histórico: Abolição da Escravatura em 13 de maio de 1888

Um prato na mesa: Só um?

Um desporto: Natação

Um filme: Ponte para Terabítia

Uma maravilha: Comer

Além de brasilega: Várias paranóias

 

 

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