Andréa Luísa Teixeira: “A música é um amor eterno.”

Em 3 de maio a pianista brasileira Andréa Luísa Teixeira e o trombetista brasileiro Antônio Cardoso deram um recital, com música de Pixinguinha, Fernando Morais, Santana Gomes e a histórica pianista galega Maria Luísa Sanjurjo, sendo a segunda vez que tocavam no Auditório do Conservatório Profissional de Música de Santiago de Compostela.

Com este motivo e para publicar no PGL pela semana das letras galegas, Isabel Rei Samartim entrevistou a pianista e pesquisadora brasileira.

Andréa Luísa Teixeira

Andréa Luísa Teixeira

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Andréa, você é brasileira e tem muita relação com Portugal. Faça uma breve apresentação pessoal.

Sim, sou brasileira. Morei em Portugal durante quatro anos para fazer o doutorado na Universidade Nova de Lisboa. Tive que retornar ao trabalho no Brasil, na Universidade Federal de Goiás, Escola de Música e Artes Cênicas, onde sou Pianista e Pesquisadora desde 1993. Tenho muitos projetos em Portugal atualmente. Quando me mudei para Lisboa, na época do doutorado, comecei a fazer produções para concertos de  músicos brasileiros  em Portugal. Sou também Investigadora-Colaboradora do Centro de Estudos em Sociologia e Estética Musical (CESEM), da Universidade Nova de Lisboa. De 2001 a 2016, fui investigadora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, na área de musicologia e etnomusicologia. Criei também, juntamente com o tenor e Professor de Canto da Escola de Música do Rio de Janeiro, Dr. Alberto Pacheco, a “Academia dos Renascidos”, que propõe divulgar a música vocal luso-brasileira.

Que motivos a levaram a estudar música e piano? Você também toca outros instrumentos, conte mais sobre isso.

Eu já nasci com a música me acalentando Digo isso porque desde que me lembro, sou fascinada por essa magia que é a música. Minha mãe tinha estudado acordeão e me ensinou as primeiras melodias aos três, quatro anos. Mas eu pedia que ela me ensinasse, não foi nada imposto. Depois entrei no ensino formal aos seis anos de idade. Aos doze anos viajava para fazer concursos nacionais de piano pelo Brasil, sendo supervisionada essa época por Lilian Carneiro de Mendonça, grande professora goiana, e de várias gerações de pianistas espalhados pelo mundo. Ela é muito atuante dentro e fora do Brasil. Também nessa época comecei a me interessar por outros instrumentos, como foi o caso da flauta transversal e do cavaquinho. Goiânia, minha cidade, tinha fundado em 1983 o Clube do Choro, que incentivava esse estilo musical aos novos músicos da cidade. Eu era a única mulher nessa época, aos 13 anos de idade, e levei os três instrumentos muito a sério até a época de entrar para a Universidade, quando escolhi o curso de Performance-Piano. Mas nunca deixei de tocar a flauta transversal. Tenho vários grupos onde toco flauta e piano. Porém, o repertório dos instrumentos é muito distinto. Como flautista, tenho um repertório de música popular. Prova disso, é que tenho participação em gravações de mais de 50 títulos de CD´s de cantores populares goianos, e o repertório de piano, me dedico mais à divulgação da música luso-brasileira, pois temos compositores geniais que são pouco conhecidos e divulgados.

Aos trinta anos de idade ganhei um Concurso na Categoria Profissional de Piano na França, e dessa época começaram os convites para concertos internacionais. Foram muitos momentos lindos em vários teatros do mundo, como o Carnegie Hall em Nova York; Centro Nacional de las Artes, México; Teatro Principal de Santiago de Compostela; Teatro de São Carlos, Lisboa; Sala Vienna, Salzburg – Áustria, e tantos outros. A música é um amor eterno.

Como se entende a música clássica no Brasil?

Temos uma história musical recente, comparando com a Europa, pois entre 500 anos e doze mil anos não são praticamente nada, porém,  temos características marcantes e de muita musicalidade comprovada por pesquisadores e pela própria história. A Companhia de Jesus chegou ao Brasil e catequizou os indígenas tanto com o teatro como na música vinda da Europa. Essa educação musical foi alargada também aos negros e aos brancos. Como o Brasil é uma mistura dos índios, africanos e várias culturas que migraram para cá em busca de terra e trabalho, temos uma música clássica muito influenciada por ritmos característicos africanos e indígenas. No século XVIII por exemplo, houve uma proliferação de Casas de Óperas no Brasil. Temos compositores clássicos brasileiros fantásticos, como Luís Álvares Pinto,  Lobo de Mesquita, Padre José Maurício e Carlos Gomes. Depois, no fim do século XIX e início do XX, começa a aparecer a escola nacionalista,  com Alexandre Levy. E mesmo sem ser reconhecida na época como música clássica, o final do século XIX também foi marcado por Chiquinha Gonzaga, uma mulher brasileira à frente de seu tempo. Foi a primeira Maestrina do Brasil, bem como a criadora da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Chiquinha é a autora da marchinha carnavalesca Ó Abre Alas, a mais conhecida de todos os tempos, mas o fato dela ter popularizado a música de salão, não tira de Chiquinha sua verve clássica, reconhecida por vários investigadores, que soube incorporar a história musical do Brasil em suas operetas e tantas outras composições. Depois disso, tivemos a Semana da Arte Moderna no Brasil, ocorrida em 1922, que valorizava sobremaneira a música com temas brasileiros, e nesse período, encontramos em Villa-Lobos o maior divulgador, porém, existem muitos outros compositores excelentes com essa mesma vertente, como Fructuoso Viana, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandes, Radamés Gnatalli, Claudio Santoro, Eunice Catunda, Guerra Peixe, Gilberto Mendes, Marlos Nobre, Ronaldo Miranda, Ivan Vilela, Almeida Prado, Ricardo Tacuchian, e muitos outros compositores que temos muito orgulho e admiração. A música clássica no Brasil, pelo menos na academia,  reconhece esses nossos compositores brasileiros, porém, para os brasileiros que não percebem de música, e querem ser apenas ouvintes sem se aprofundarem, a música clássica é entendida apenas por compositores como Bach, Liszt, Chopin, Mozart etc. A maior parte da mídia brasileira, infelizmente não reconhece e não valoriza nossos compositores. Por exemplo, Camargo Guarnieri faleceu em 1993 e não foi dada a mínima atenção ou matéria nos grandes jornais e revistas brasileiras. A música clássica no Brasil iniciou então suas músicas embrenhadas pela produção européia, e conseguiu se articular e ter uma personalidade particular, linda, cheia de cores, ritmos e harmonias, existentes apenas em “terras brasilis”.

Você também estuda a música popular, como vive a sua atividade investigadora?

Sim, estudo a música popular e idealizei um projeto chamado Sons do Cerrado juntamente com o pesquisador Altair Sales Barbosa. Consistia em mapear a região do Cerrado, a savana brasileira, com as manifestações culturais existentes nesse bioma. O Cerrado é formado (pelo menos o que resta dele, pois a agricultura e a criação de gado é predominante) e aparece em oito estados do Brasil: sul do Maranhão, sul do Piauí, Parte de Minas Gerais, oeste da Bahia, Goiás, Tocantins e Bahia e parte de Mato-Grosso. Esse bioma é o principal manacial de águas do país, bem como uma rica fauna e flora, e com isso, os povos antigos se instalavam e plantavam nesses lugares. As comunidades mais antigas indígenas, e os quilombolas, que são os escravos que fugiram para lugares de difícil acesso, conservaram manifestações, cantos de trabalho, de colheita, cantos de chuva, danças e manifestações folclóricas incríveis. Tínhamos a ideia de mapear em CD´s todo esse território, porém, a Universidade nos dias atuais, não consegue verbas para esse tipo de projeto, infelizmente. Iniciamos o projeto “Sons do Cerrado” de mapeamento no ano de 2001, e lançamos treze volumes de CD e um DVD até o ano de 2014. O projeto não existe mais por falta de verbas e pedi demissão da Pontifícia Universidade Católica de Goiás em 2016. Foram 15 anos de pesquisas em etnomusicologia que me deram muitas alegrias e gratidão aos povos que ainda velam por seus saberes tradicionais.

Minha saída da PUC-Goiás não me impede de continuar as pesquisas, mas como estou em outro projeto do doutorado não tenho ainda disponibilidade de retomá-lo, mas farei assim que possível. Para quem tiver interesse em conhecer esses registros, pode procurar pelo nome “Sons do Cerrado” no youtube, que toda a coleção está disponível online. (www.youtube.com/user/SonsDoCerrado)




O seu estudo sobre as Folias de Reis brasileiras trava um forte laço de união com os Cantos de Reis galegos, conte-nos um pouco sobre essa pesquisa.

Obrigada por esse pergunta Isabel, pois podemos continuar a resposta anterior. A pesquisa da Folia de Reis nasceu de minha vontade de continuar uma gravação que tinha sido feita pelo Dr. Altair Sales Barbosa, em fita de rolo, na década de 70, na cidade de Correntina, oeste Bahia, primeiro estado descoberto no ano de 1500 pelos portugueses.  Eu fiquei impressionada com as gravações em fita de rolo, com as melodias e depois, o próprio Dr. Altair Sales me mostrou uma outra gravação feita na década de 80. Eu decidi, em 1998, a terceira década, fazer novas gravações locais, pois eu tinha em mãos uma preciosidade, uma gama enorme de pesquisa científica proveniente gravações difíceis de serem encontradas. Iniciei meus estudos nessa região, e esse foi meu tema do Mestrado. Liguei as músicas das Folias de Reis com a filosofia, como o tempo, o mito, o sentido e a memória.

As Folias de Reis do Brasil foram trazidas pelos portugueses, e consequentemente, pelos galegos. O interior do Brasil tem muito da Galiza. A primeira vez que estive em Compostela, ouvi uma música sendo tocada pela gaita de fole na Praça do Obradoiro que era a mesma música cantada por um grande artista brasileiro chamado António Nóbrega. Ele fez estudos sobre a música do Brasil na década de 80 no CD: Brincadeira de Roda, Estórias e Canções de Ninar, e a mesma música que ouvi em Compostela, o Nóbrega tinha ouvido a melodia de uma senhora ex-escrava na Bahia. Para mim, brasileira, é difícil, escrever que ainda no século em que nasci, todavia existiam pessoas que viveram a época da escravatura. Também toco nesse assunto, porque quando pesquisei a Folia de Reis na região de Correntina, cataloguei mais de 25 grupos de Reis em um perímetro territorial muito curto. E dentre esses grupos, vários eram descendentes de índios e escravos, cada um com características marcantes. Esses grupos de Reis da região tem algo em comum, que são as duas flautas feitas em taboca (um tipo de bambu da região), e são tocadas em terças, além da zabumba (tambor), o tambor pequeno, e outros instrumentos de percussão, todos feitos a mão, e criados por eles. Produzi um vídeo documentário sobre essa investigação em 1999. Ainda tenho vontade de melhorar a qualidade da gravação desse filme, que não foi gravado em sistema digital na época, para disponibilizá-lo online.

As Folias de Reis galegas e portuguesas com certeza fizeram a ponte, nos ensinaram essa manifestação e com isso, o Brasil possui hoje em números, os maiores grupos de Folias de Reis do mundo.

Concerto no conservatório compostelano, 3 de maio de 2018

Concerto no conservatório compostelano, 3 de maio de 2018

Nós (a Andréa e a Isabel) conhecemo-nos através do Ivan Vilela, que é um grande da música brasileira e expoente da viola caipira, quando ele visitou o Conservatório compostelano em 2010. Como foi o vosso encontro no Brasil?

Pois é, o Ivan Vilela é para mim um dos grandes compositores da atualidade, e como intérprete da viola brasileira, nosso embaixador.

Após o lançamento dessa Coleção Sons do Cerrado, como projeto de pesquisa e de alcance investigativo interessante, a mídia no Brasil foi muito generosa e se interessou pelo projeto. Fomos capa dos jornais mais importantes do Brasil, e com isso, o Ivan Vilela leu a matéria que continha o meu contacto. Eu conhecia o trabalho do Ivan, e tinha o primeiro disco a solo dele, na época, era o CD Paisagens. Recebi um dia e-mail de uma pessoa que tinha lido a matéria e se interessava em comprar a coleção Sons do Cerrado, e assinou Ivan Vilela. Eu respondi na hora perguntando se ele era o violeiro Ivan Vilela. Daí nasceu uma grande amizade e uma parceria musical. Fizemos muitos projetos em conjunto. Eu gostaria de tocar mais com ele, porém nossa agenda não permite. Quando eu fui a Compostela novamente, para estudar nos cursos de verão da Universidade de Compostela, comentei com o Ivan que estaria na Galiza e ele me disse: Você tem que conhecer duas pessoas: Isabel Rei e Uxia. Assim foi. Sou grata ao Ivan por me ter apresentado duas mulheres que admiro como pessoas e como artistas, e acrescentam memórias inesquecíveis a cada encontro. Precisamos agora nós quatro fazermos um projeto sobre Galiza, Portugal e Brasil. Seria fantástico!

Você já tocou várias vezes na Galiza com diferentes formações, a última tem sido o 3 de maio no Conservatório Profissional de Música, como é a sua experiência com o público galego?

A primeira vez que estive na Galiza foi no ano de 2001 para estudar Musicologia com o Padre Calo nos cursos de verão da Universidade de Santiago de Compostela, e a primeira experiência com o público galego foi também nesse Festival, onde pude presenciar a receptividade e o interesse das pessoas com quem estava no palco e com a música. Depois voltei para estudar Musicologia por mais duas vezes, como bolsista. Já fui a Compostela para tocar com a Orquestra de Ouro Preto, com o Quarteto, piano solo, e por último, com o trompetista Tonico Cardoso, professor da Universidade Federal de Goiás. E a receptividade é de um público atento e interessado na música brasileira. Na verdade, nos reconhecemos na nossa cultura, seja da fala, da música, de nossas memórias galegas que vieram para o Brasil. A cultura galega está intrínseca na cultura brasileira, e devemos estar mais atentos para tantas culturas serem reconhecidas em uma só, tantas verdades musicais serem pronunciadas e cuidadas como merecem. Há muito ainda para se investigar e comprovar que galegos e brasileiros construíram juntos culturas que ainda residem no interior do Brasil.

Para finalizar, qual a sua opinião sobre o reintegracionismo galego? Como música, acha que serve para entender melhor a Galiza?

O português nasceu na Galiza, e a língua falada da Galiza até o Douro em Portugal, era o galaico-português. Portugal, quando ficou independente, sua língua passou a se chamar português, e a da Galiza, galega.  É um assunto difícil e delicado, e ao mesmo tempo que parece claro, fica confuso. Digo confuso por causa dos teores políticos que abarcam toda a questão da perspectiva crítica do discurso. Estamos falando de identidade, e longe de eu ser douta em linguística, o que ocorreu na Galiza foi uma substituição linguística. É muito confuso por exemplo, para quem é galego e para quem é do estrangeiro, ver  diferentes universidades da Galiza exigirem línguas diferentes nos trabalhos finais.  Em uma exige-se o espanhol, na outra o galego. Imagino que deva ser muito difícil uma academia ir contra fatores políticos maiores para que a exigência do espanhol predomine.

Como turista em Galiza ou como profissional da música ou até mesmo como estudante que fui da Universidade de Santiago, me causa estranheza falar o português com um atendente de mesa por exemplo e ele nos responder em espanhol, se o galego é português, e depois ouvimos de longe eles falarem o galego entre eles. São questões controversas que nos fazem pensar em uma confusão para os habitantes locais. A identidade cultural vai ficando dessa forma embaralhada, em um retrocesso ao entendimento de suas raízes. E falando sobre raízes, dela conseguimos absorver melhor a música, entender o fio que norteou a cultura brasileira. De onde começamos. É muito importante para se entender a nação. Mesmo sendo inerente a qualquer cultura, a globalização ocorre nas sociedades a um nível assustadoramente rápido, principalmente na era digital em que estamos, porém, a identidade de um povo, a compreensão da cultura urbana, devem ser estimulados ao seu extremo conhecimento, desde a fase da primeira instrução educacional. Dessa forma, podemos ter o consolo de que as gerações futuras poderão discernir e desenvolver com pertencimento a sociedade em que ele, nós vivemos.

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