Iván Arias: “Morar em Portugal é a experiência mais enriquecedora que alguém com interesse no galego pode chegar a viver”

Iván é palense e paleo-falante como o era o concelho quando era criança. Agora a fotografia é diferente. Estudou Filologia Alemã e em aulas de Teresa Moure, sociolinguística, começou a escorregar para o lado escuro da norma. Mora em Braga onde estuda o Mestrado em Lexicografia na Uminho. Fica sossegado por ouvir crianças a falarem galego nas ruas bracarenses. Julga que se deve aumentar o input em galego-português de qualidade entre os adolescentes. 1º sócio da Agal em 2022.

Iván é de Palas de Rei. Se tivesses de descrever a paisagem linguística da tua infância, que nos contarias? E se contrastasses com a Palas de Rei atual?
Vivi em Palas de Rei até aos 18 anos e só depois reparei em que todo esse tempo vivera dentro de um pequeno sonho. Falo em sonho porque só quando comecei a andar na Universidade, descobri que a maior parte das pessoas jovens não utilizavam o galego na sua vida quotidiana. Por isso, posso afirmar que tive grande sorte durante a minha infância, pois em Palas de Rei todas as crianças utilizavam o galego, quer na escola, quer na casa. Eu brincava em galego e via desenhos animados na nossa língua. Para mim, falar galego era, em suma, o mais natural e o esperado.
No entanto, tenho um irmão mais novo e já noto algumas diferenças: embora ele tenha uma situação muito parecida com a minha quanto à vida em galego com a família e ele utilize a nossa língua para a comunicação com os seus amigos, é mais frequente agora encontrarmos crianças em Palas que já são completamente educadas em castelhano. São decisões dos pais e das mães que não tenciono questionar nesta entrevista, mas sim que reflito sobre elas muitas vezes. Acho que às vezes a rapaziada agora julga, se calhar de forma não consciente, que o galego é uma língua só útil para a oralidade. Por exemplo, aprecio que eles falam em galego entre si normalmente, mas quando pegam no WhatsApp, ou noutra rede social, escrevem logo em castelhano, sem eles sequer hesitarem. É possível que isto também tenha a ver com o input que eles recebem, em que o galego-português brilha pela ausência.

Acho que às vezes a rapaziada agora julga, se calhar de forma não consciente, que o galego é uma língua só útil para a oralidade. Por exemplo, aprecio que eles falam em galego entre si normalmente, mas quando pegam no WhatsApp, ou noutra rede social, escrevem logo em castelhano.

Em que momento começas a questionar o relato local sobre a nossa língua?
Como já disse anteriormente, durante a minha adolescência nem questionei muitas coisas relativas à língua porque para mim o natural era falar em galego. Estudei Filologia Alemã (agora a licenciatura chama-se “Línguas e Literaturas Modernas”, mas pronto, é a mesma coisa) e frequentei o módulo optativo de Linguística Aplicada. Foi numa cadeira desse módulo, Sociolinguística, com a Profa. Teresa Moure, onde começámos a debruçar-nos sobre a situação atual do galego e outras possibilidades para a sobrevivência da língua, sendo uma delas o reintegracionismo. Confesso que na altura, não estava muito convencido com este modelo linguístico, mas após algumas leituras por minha conta e depois de desenvolver um pouco uma atitude crítica perante tais problemas sociolinguísticos, achei que uma maior convergência com o padrão português podia ser a única via para a salvação da língua na Galiza.
Foi aí que pensei pela primeira vez: o galego, assim como o português ou o brasileiro, são diferentes variedades dentro de um grande diassistema, e temos que aproveitar as oportunidades que nos são oferecidas com isto.  Não podemos continuar a voltar as costas deliberadamente à estratégia lusista. Que galegas e portuguesas fazemos parte do mesmo sistema linguístico é, do ponto de vista filológico, um facto inegável – e cabe termos em consideração que falarmos em línguas é sempre uma abstração, já que as únicas realizações concretas são as variedades e os dialetos. A partir daí, decidi que ia empregar sempre o padrão português para a minha comunicação escrita e assim o fiz desde 2019, e vou continuar a caminhar por este sendeiro escuro (hahahaha).

Na atualidade moras em Braga onde estudas o Mestrado em Lexicografia na Uminho. Quais as tuas áreas de interesse?
A lexicografia é uma área muito abrangente, para além de fascinante! Uma das minhas áreas de interesse sempre foi o ensino de línguas estrangeiras (nomeadamente do alemão), e na minha opinião, uma aprendizagem de competências bem-sucedida em língua estrangeira deve estar ligada à aquisição de boas estruturas a nível semântico e sintático.
Deste modo, interesso-me muito pela semântica e a sintaxe, pois penso que, frente ao defendido pela linguística tradicional em que o morfema é a unidade mínima de significado, devemos falar já na frase como sendo a unidade mínima com significado, uma vez que só conseguimos conhecer bem uma unidade léxica (isto é, uma palavra…), quando reparamos no seu co(n)texto. Um exemplo rápido, que sempre fornece o Prof. Álvaro Iriarte (de quem aprendi a maior parte destas coisas que aqui conto): na colocação ódio mortal, mortal não significa “que causa a morte”, mas tem um significado de intensidade associado e é por isso que só conseguimos deduzir o significado real quando pegamos no contexto e analisamos a combinação deste nome e deste adjetivo.
Resumindo, uma área de interesse para mim é a representação lexicográfica destas construções nos níveis semântico e sintático, para além da sua análise linguística. Ultimamente, também cresceu o meu interesse perante a áreas mais viradas para a tecnologia: a linguística de corpus e a linguística computacional vão acabar por ser a minha verdadeira paixão!

Ultimamente, também cresceu o meu interesse perante a áreas mais viradas para a tecnologia: a linguística de corpus e a linguística computacional vão acabar por ser a minha verdadeira paixão!

O facto de morares em Portugal, em que medida está a ajudar a modificar a tua forma de ver e, sobretudo, de viver o galego?
Morar em Portugal é a experiência mais enriquecedora que alguém com interesse no galego pode chegar a viver. Ouvir crianças a falarem a nossa língua com normalidade todos os dias é uma sensação que até me sossega, juro! Para além desta anedota, aprecio que o português está vivo em todos os registos, sejam quais forem os usos.
Isto não acontece com a língua na Galiza: a gíria juvenil parece-me um muito bom exemplo disto, já que os adolescentes podem falar em galego, mas sempre acabam por lançar mão de palavras castelhanas, porque a nossa língua na Galiza carece de léxico nestes âmbitos. O mesmo acontece com os âmbitos administrativo ou académico, em que é difícil encontrar situações normalizadas em galego. Em Portugal tornei-me mais ciente de que a nossa língua está viva na investigação científica, nos processos administrativos, na política… Além-Minho a língua está verdadeiramente normalizada!

Em Portugal tornei-me mais ciente de que a nossa língua está viva na investigação científica, nos processos administrativos, na política… Além-Minho a língua está verdadeiramente normalizada!

Na perspetiva de que a povoação galega tenha acesso a outra forma de viver a língua, quais achas que seriam as melhores estratégias?
Como se veio defendendo nos últimos anos, acho que o binormativismo pode ser um bom primeiro passo à frente, embora eu defenda que a aprovação de uma só norma convergente com o português seria uma solução mais apropriada do ponto de vista filológico e mais respeitoso com a história. Tornar o português língua obrigatória no ensino secundário ia ajudar muito, porque é desta forma como muitas raparigas iam descobrir a existência de um mundo paralelo em que a nossa língua – seja qual for o nome dela – está viva e o normal é falá-la sem preconceitos.

Como se veio defendendo nos últimos anos, acho que o binormativismo pode ser um bom primeiro passo à frente, embora eu defenda que a aprovação de uma só norma convergente com o português seria uma solução mais apropriada do ponto de vista filológico e mais respeitoso com a história.

Nos dia de hoje temos sorte, porque contamos com alguns recursos em galego nas redes sociais, âmbito onde a utilização da língua cresceu bastante nos últimos anos. Podemos ouvir galego no TikTok, no Youtube… e parece-me que estas estratégias são sempre boas. Porém, deviam ter maior divulgação entre a população mais nova, uma vez que penso que às vezes a rapaziada nem sabe da existência disto… A escola devia desempenhar um papel normalizador neste sentido: como já referi antes, para os rapazes novos é essencial receberem constantemente input de qualidade em galego-português.

Foste o 1º sócio de 2022. Porque decidiste tornar-te sócio da Agal e quais as tuas expetativas para a associação?
Tornar-me sócio da AGAL era uma resolução de Ano Novo e foi a primeira que cumpri (se calhar até acaba por ser a única que vou cumprir ahahha). Acho que a Associação tem trabalhado ativamente nos últimos anos para tornar mais visível a vertente reintegracionista e julgo que se tem trabalhado bem. Só temos que ver o reconhecimento público que tem, por exemplo, o Twitter @emgalego, de que eu me declaro fã incondicional!
O meu primeiro contacto com a Associação aconteceu durante a primeira edição do curso “O galego, porta aberta para o mundo”, organizado pela USC, e nunca duvidei que esta associação pudesse representar uma alternativa forte à norma atualmente vigente na Galiza.

O meu primeiro contacto com a Associação aconteceu durante a primeira edição do curso “O galego, porta aberta para o mundo”, organizado pela USC, e nunca duvidei que esta associação pudesse representar uma alternativa forte à norma atualmente vigente na Galiza.

Aliás, ser sócio da AGAL é uma forma de agradecer, porque foi com recursos criados por pessoas da Associação como eu aprendi, na maior parte, a escrever em português: graças ao site anossagalaxia.gal, graças ao dicionário estraviz.org, graças ao blogue da Carme Saborido, graças aos livros da Através… Portanto, agora de forma pública: obrigado!
Espero que a Associação continue a trabalhar e a atingir cada vez um público maior, pois urge visibilizar o português na Galiza mais do que nunca antes. Espero poder dar igualmente um pequeno contributo, cooperando com diferentes secções da AGAL sempre que possível.

Em 2021 somamos 40 anos de oficialidade do galego. Como valorarias esse processo? Que achas que foi o melhor e o pior?
Avalio que a legalização do galego foi provavelmente o melhor passo dado nesses 40 anos de oficialidade. Mas, infelizmente, acho que não ganhamos as suficientes batalhas durante esses anos, pois as estatísticas mostram uma paisagem carente de esperança para a língua na Galiza.
No entanto, conseguirmos que o galego tivesse caráter cooficial no Estado espanhol foi, e continua a ser, uma boa notícia. Naquela altura, a criação da Rádio e da Televisão Públicas galegas, com a companhia CRTVG, foi também uma boa iniciativa, graças à qual a população se apercebeu da possibilidade de contarmos com um canal de divulgação jornalística em galego. Não devemos esquecer a Lei Paz-Andrade, pois a sua aprovação foi também um sucesso, embora a posta em prática dela seja inexistente. Vemos, deste modo, que houve diferentes medidas aprovadas em prol da língua que foram vantajosas.
Se me perguntares pelo pior, vou responder que a falta de trabalho na política para a defesa e proteção da língua, materializado em factos como a eliminação propositada do galego no ensino como língua veicular para as ciências, entre outros. Julgo, igualmente, que a adoção da norma ILG-RAG foi um passo que prejudicou a língua, pelo facto de a ter afastado de outras variedades, nomeadamente do dialeto vizinho português.

Se me perguntares pelo pior, vou responder que a falta de trabalho na política para a defesa e proteção da língua, materializado em factos como a eliminação propositada do galego no ensino como língua veicular para as ciências, entre outros. Julgo, igualmente, que a adoção da norma ILG-RAG foi um passo que prejudicou a língua, pelo facto de a ter afastado de outras variedades, nomeadamente do dialeto vizinho português.

Paralelamente, também começou a decorrer uma castelhanização da língua a todos os níveis e isto é se calhar o maior fracasso do isolacionismo: do léxico nem vou falar, porque é evidente que cada vez consideramos normais no galego palavras claramente castelhanas (vejam exemplos como ayer ou abuelo…). Preocupo-me mais, todavia, com a fonética ou estruturas léxico-gramaticais que acabam por ser um decalque constante do espanhol e que são, finalmente, muito mais difíceis de corrigir do que um castelhanismo no vocabulário. É assim como vai morrendo a língua na Galiza…

Como gostarias que fosse a “fotografia linguística” da Galiza em 2050?
Como gostaria é uma pergunta e como acho que vai ser é outra muito diferente. Confesso que não costumo mostrar-me muito otimista quando perguntado por isto. Não obstante, vou cingir-me à tua pergunta e responder só com aquilo que gostava de ver na Galiza de 2050.
Gostava, sobretudo, de ver uma Galiza onde as crianças – que, não devemos esquecer, são sempre o futuro – falassem galego com normalidade. Uma Galiza onde o padrão português fosse oficial e onde as pessoas tivessem muito input de qualidade na nossa língua, que é uma cena quase inexistente nos dia de hoje. Gostava de viver na Galiza da prosperidade, onde se faz ciência na nossa língua e onde se investe dinheiro na proliferação do conhecimento científico. Uma Galiza onde o rural crescesse, mas também houvesse muita vida [em galego] nas cidades. Gostava de ver, para concluir, uma Galiza normalizada em todos os sentidos.

 

Conhecendo Ivan Arias

Um sítio web: Vou mencionar dois: um galego, o blogue Lusopatia, da Carme Saborido, e outro português, o blogue Certas Palavras, do Marco Neves.

Um invento: a escrita e, diretamente ligado a ela, a aparição e criação de léxicos e dicionários.

Uma música: Lentamente, da banda portuguesa Capitão Fausto

Um livro: Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago

Um facto histórico: a Queda do Muro de Berlim.

Um prato na mesa: o sushi.

Um desporto: fazer caminhadas.

Um filme: Vou dizer uma série, A Guerra dos Tronos.

Uma maravilha: a Costa da Morte.

Além de galego/a: cidadão do mundo.

 

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