Noélia Toja: “As Normas oficiais favorecem a diluição do galego no castelhano”

Noélia Toja é da Costa da Morte, Sás. Na sua infância o galego era a melodia comum. Tem uma opinião dividida a respeito do ensino formal e a língua. Estudou tradução e interpretação e foi aluna do Carlos Garrido em Vigo. Trabalha, na sequência da sua formação, como tradutora, nuns tempos muito digitais. Cita até três motivações para ter estudado português na EOI de Compostela. Destaca a rede de escolas sementes como projeto e faz parte da área editorial da Através.

Noélia nasceu e cresceu em Sás, na Terra de Soneira, na Costa da Morte. Como era a fotografia linguística da tua infância, quer na família, quer no concelho?

A fotografia linguística da minha infância era maioritariamente monolingue: cresci no rural, numa família galego-falante e num município em que se falava principalmente galego. Eu e os meus colegas de turma falávamos castelhano apenas nas aulas de língua castelhana e nas matérias lecionadas em castelhano. De facto, havia apenas um par de alunos castelhano-falantes em toda a escola.

O ensino formal foi um aliado para a língua familiar?

O ensino formal foi uma faca de dois gumes. Por um lado, ajudou-me a depurar o galego de castelhanismos gritantes e agasalhou a minha língua materna, por tanto tempo desprezada e vilipendiada, com um manto de oficialidade. Por outro, inculcou-me um padrão artificial afastado das raízes da língua e que tem o castelhano como modelo a seguir, quer na fonética, quer no léxico.

Como e quando foram os teus primeiros contactos com a estratégia lusófona para o galego?

O meu primeiro contacto com a estratégia lusófona foi na universidade, com o professor Carlos Garrido, quem nos explicou o processo de degradação e substituição castelhanizante que o galego sofre desde há séculos. Inicialmente, vindo como vinha de anos e anos de escolarização no modelo ILG-RAG, não estava muito recetiva a essas ideias, mas, com o passar do tempo, refleti sobre elas e sobre como o galego evoluíra através das diferentes gerações da minha própria família. Ponderei sobre como havia vozes usadas por meus avós que não eram vulgarismos, como me disseram na escola, mas formas genuinamente galegas que perduraram no tempo e que a geração de meus pais e a minha própria geração já perdêramos por ingerência do castelhano. Foi um processo de introspeção que iniciei por causa das diferenças que existiam entre o que me ensinaram na escola e a minha própria experiência vital, que a estratégia lusófona sim me ajudou a entender.

Noélia formou-se em tradução e interpretação e o seu percurso laboral está ligado a esta formação. Há quem diga serem bons tempos para a tradução profissional e quem achar o contrário. Qual a tua leitura?

A minha leitura não é muito otimista, infelizmente. A irrupção da tradução automática, treinada e alimentada com textos produzidos por profissionais, no campo da tradução acarretou uma desvalorização e precarização da profissão. Hoje em dia não é infrequente receber encomendas de trabalho não para traduzir um texto, mas para editar uma tradução automática, a qual tem, obviamente, um preço inferior a uma encomenda convencional de tradução. A grande vantagem da tradução automática sobre a duma tradutora profissional é a velocidade, apenas isso; a qualidade não é comparável. Porém, os clientes nem sempre se importam com isso. Num mundo ideal, a tradução automática seria mais uma ferramenta na caixa de ferramentas duma tradutora, mas, no mundo em que vivemos, parece que vai acabar por fagocitar a profissão quase por completo.

No último ano letivo estudaste português na EOI de Compostela. Quais foram as tuas motivações? Recomendas para outras pessoas?

Foram várias as motivações que me levaram a aprender português. Primeiro, queria aperfeiçoar o meu galego, pois quando entrei em contacto com o resto do mundo lusófono e vi que tinham uma língua plena, percebi que tinha lacunas em muitas áreas. Segundo, achava que aprender português seria a ponte perfeita para conhecer o resto de culturas e países lusófonos. Terceiro, aprender português representava uma ótima oportunidade para a minha carreira profissional; afinal de contas, o Brasil é a nona economia do mundo e faz parte dos BRICS, que já ultrapassaram o G7 em termos de PIB com base na Paridade de Poder de Compra—o português faz parte do futuro. É por isso que recomendo vivamente aprendê-lo! Acho que é uma experiência enriquecedora que nos conecta com o resto da lusofonia e nos permite olhar com novos olhos a nossa realidade na Galiza.

Porque decidiste tornar-te sócia da AGAL? O que esperas no trabalho da associação?

Decidi tornar-me sócia da AGAL porque sentia uma grande impotência ao ver o estado atual da língua galega após anos de políticas linguísticas linguicidas. Queria fazer algo a respeito e aproximar-me de pessoas com essa mesma afinidade, pois a maioria da gente do meu entorno, apesar de ser galego-falante, não se importa particularmente com a língua. Espero que, através do meu trabalho da AGAL, possa fazer a minha parte para promover o galego e encontrar uma comunidade de pessoas com aspirações similares.

Acabas de te integrar na área editorial, na Através Editora. Por onde julgas que deveria transitar o reintegracionismo para avançar socialmente?

Estamos confrontados com umas instituições estatais e autonómicas que se revelaram impassíveis, ou mesmo claramente hostis, para com o galego. Esta situação pode mudar se houver uma nova inquilina no Monte Pio. No entanto, não podemos depender unicamente da boa vontade das instituições, que já nos falharam inúmeras vezes, mas devemos continuar a nos autoorganizar como fizemos sempre. Precisamos construir um movimento de base popular e atingir uma massa crítica para podermos mudar as coisas de baixo para cima. É por isso que a iniciativa das Escolas Semente é tão importante. Começou em 2011 com uma única escola em Compostela e agora já há escolas em Trasancos, Lugo, Vigo, Ourense e na Crunha. Para além disso, acho proveitosa a parceria com o projeto Ikastolen elkartea, da Euskal Herria, que também impulsiona um modelo de imersão linguística no idioma próprio. Esta colaboração estratégica permite-nos trocar experiências e conhecimentos.

Precisamos construir um movimento de base popular e atingir uma massa crítica para podermos mudar as coisas de baixo para cima. É por isso que a iniciativa das Escolas Semente é tão importante.

Em 2021 somamos 40 anos de oficialidade do galego. Como valorarias esse processo? Que foi o melhor e que foi o pior?

Foi um processo com claro-escuros. Por um lado, a oficialidade permitiu ao galego chegar em muitos âmbitos novos: instituições públicas, ensino, televisão e, posteriormente, também redes sociais, embora fosse de maneira reduzida. Por outro lado, observamos uma hemorragia crítica de galego-falantes, em especial nas faixas inferiores de idade. Há 40 anos, a maioria da população falava galego; hoje em dia, menos de 17% dos jovens têm o galego como língua inicial. Este é um balanço terrível. Para que serve a oficialidade duma língua se ninguém a fala? Uma das conclusões que podemos tirar é que a oficialidade não é suficiente para uma boa saúde do galego. É oficial, sim, mas não é indispensável; indispensável é o castelhano, essa é a língua que precisamos saber para o nosso dia a dia. Se quisermos avançar, isso tem de mudar.

Também devemos refletir sobre o papel desempenhado pelo ensino. Infelizmente não são infrequentes os casos de crianças que falam galego quando começam a escola e que saem a falar castelhano. Para além disso, quando as estudantes galego-falantes completam o Secundário, são competentes nas duas línguas co-oficiais, enquanto as estudantes castelhano-falantes unicamente dominam o espanhol. Isso provavelmente seja devido a que apenas são expostas ao galego nas matérias lecionadas em galego, o qual é claramente insuficiente. Em suma, a escola faz com que muitas galego-falantes acabem por falar castelhano e, acima disso, não consegue ensinar galego de jeito eficaz às castelhano-falantes—acho que o efeito castelhanizante da escola é incontestável.

Por fim, temos de contemplar o papel do Estado espanhol. A Galiza leva 800 anos sob o domínio de Castela, primeiro, e da Espanha, depois. O seu alvo foi, e continua a ser, assimilar e espanholizar a Galiza; erodir o galego e substituí-lo pelo castelhano. É nesse enquadramento que durante a Transição se aprovou a Lei de Normalização Linguística e que foram criadas as NOMIGA, baseadas no castelhano e afastadas da ortografia histórica confluente com o português. Estas Normas não foram idealizadas para promoverem um galego pleno, mas um galego subalterno ao castelhano. É por isso que um galego próximo do português representa uma ameaça para o Estado espanhol e é algo a evitar a todo o custo. Levando isso em consideração, não é difícil perceber que as Normas oficiais favorecem a diluição do galego no castelhano e que isso foi feito de propósito. Como disse Carvalho Calero, «o galego ou é galego-português ou é galego-castelhano.»

A Galiza leva 800 anos sob o domínio de Castela, primeiro, e da Espanha, depois. O seu alvo foi, e continua a ser, assimilar e espanholizar a Galiza; erodir o galego e substituí-lo pelo castelhano.

Imagina estarmos em 2050. Como gostarias que fosse a “fotografia linguística” da Galiza nessa altura?

Gostaria de ver uma Galiza soberana em que os pais ensinam galego às crianças porque se orgulham da sua língua e acham que lhes será de proveito. Gostaria de ver uma Galiza onde o galego está presente em todos os âmbitos da vida e é uma língua plena e útil. Gostaria de ver uma Galiza em que as pessoas se enxergam como parte da comunidade lusófona.

Conhecendo Noélia Toja:

Um sítio web: https://www.youtube.com/@GeopoliticalEconomyReport

Um invento: A agricultura

Uma música: “O Querer” das Tanxugueiras

Um livro: “Petrocalipsis: Crisis energética global y cómo (no) la vamos a solucionar” de Antonio Turiel.

Um facto histórico: O pico de produção do petróleo em novembro de 2018

Um prato na mesa: A tortilha com cebola

Um desporto: A procrastinação

Um filme: “Arrival” (2016) de Denis Villeneuve

Uma maravilha: A vida

Além de galega: Acumuladora de PDF.

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