Filipe Diez: «Não vejo sentido em entender a língua galega numa dimensão puramente nacional quando historicamente é uma língua internacional»

Filipe Diez é o primeiro galego da sua família, leonesa. Há três anos foi uma das pessoas promotoras do jornal on-line Praza Pública, que preencheu um importante vácuo. Ainda no âmbito da comunicação, acha muito necessário um canal infantil de TV. A sua prática pública reintegracionista é recente e deve-se ao «convencimento da fase de definitiva falência» em que entraram as instituições culturais galegas. Morou e namorou no Brasil e atualmente leciona galego e português no ensino secundário.

As tuas origens familiares são da província de Leão. Nalguma ocasião tens comentado ser o primeiro galego da tua família. Como é isso?

Meus pais procedem de lugares que aparecem no mapa por puro acidente histórico: um balneário e um monumento isolado salvaram as suas aldeias (Caldas de Luna e San Miguel de Escalada) do anonimato total. A história deles é como a de muitos galegos, migrantes do campo para a cidade, com a particularidade de que vinheram para a Corunha e não para uma cidade leonesa. Quase nada do que ocorre aqui é exclusivo nosso: o despovoamento do rural, o estigma do trabalho agrogandeiro, o desprestígio das falas associadas com o atraso, o processo de apagamento da identidade nacional… Para mim é interessante ter esses elementos de contraste, dentro da própria família.

Foste um dos promotores do diário digital Praza Pública. Passados já quase três anos do começo deste projeto, quais são as tuas sensações?

Filipe Diez | Foto: Praza Pública

No plano particular, não podo negar o orgulho e a satisfação de ver essa Praza consolidada e a ponto de cumprir 3 anos de vida, quando muitas pessoas diziam no começo que um novo modelo como o que Praza representa, um meio pensado para ser de todos e de ninguém, não passaria do papel ou no máximo duns poucos meses de vida. Hoje Praza é um projeto financeiramente auto-sustentável e o meio líder em língua galega, conquistas humildes mas contodo importantes na escala do país que somos, e sobretodo conquistas alcançadas sem renunciar à concepção original de ser um ponto de encontro de quem crê neste país, com quaisquer postulados.

Mas sou muito crítico, provavelmente o leitor mais crítico de Praza – tirando os trolls, claro –. Mesmo sabendo da escassez de recursos que temos, penso que sempre devemos aspirar a fazer mais e melhor, e nesse empenho estamos a trabalhar. Há uma cousa magnífica em Praza, que oxalá se espalhasse a muitos outros âmbitos, e é que fai que pessoas muito diversas trabalhem juntas sem reticências. Creio que esse espaço de liberdade, pluralidade e tolerância é muito necessário e deveria servir de estímulo para repensar muitas fronteiras interiores que às vezes nos limitam de jeito estéril.

Quê deficiências e carências detetas no universo dos meios de comunicação em galego? Talvez um projeto audiovisual com força?

Carências e deficiências, muitas. Desde o próprio desenho institucional, que prima o âmbito estatal no áudio-visual; até à política do Governo galego, abertamente ilegal, de compra de vontades; passando pela falta de iniciativa da CRTVG para ser um elemento dinamizador; e acabando pela passividade de boa parte da sociedade civil organizada no tocante a este assunto.

Sem tirar nem um ápice de mérito aos projetos que existem, e que são essenciais para seguirmos existindo como país, precisamos muito mais. As minhas prioridades, se tivesse que escolher, seriam: um canal de tv específico para o público infantil; outro, de colaboração da TVG com emissoras do mundo lusófono; e uma rede privada (de economia social, mas privada) de rádios em galego. E junto com isso todo, uma nova política de ajudas e subvenções, com critérios objetivos e subvencionando unicamente o uso do galego, sem clientelismo, sem manter artificialmente vivas empresas falidas e sem impedir a livre concorrência – ou seja, uma política democrática e não o modelo fraguiano que ainda subsiste hoje em dia.

Moraste muitos anos no Brasil e a tua companheira é brasileira. Eras reintegracionista antes de cruzares o Atlântico? Em que medida a tua estadia brasileira mudou a tua perceção da língua da Galiza?

Era e continuo a ser. Não vejo sentido em entender a língua galega numa dimensão puramente nacional – ou pior, regional – quando historicamente é uma língua internacional. A nossa língua, por origem, por trajetória histórica e por necessidade de futuro, só tem sentido e viabilidade entendida como parte dum tronco maior, e um tronco que tem aqui as suas raízes. Encastelar-se num discurso identitário e diferencial não é outra cousa que um reflexo da assunção do quadro imposto pelo opressor.

A minha prática pública reintegracionista é mais recente, e deve-se ao meu convencimento da fase de definitiva falência em que entraram as instituições culturais galegas dependentes do dinheiro público, que considero incapazes de seguirem a definir rumo nengum para este país nem para a sua cultura.

Filipe Diez é professor de língua galega e portuguesa no ensino secundário. Dada a tua experiência docente, que teriam a ganhar os alunos e alunas galegas com um acesso generalizado ao ensino de língua portuguesa?

Por riba de todo, o contributo seria (é já, nalguns centros onde existe esse ensino) o de prestigiar o galego. Dotá-lo nitidamente, na consciência desses falantes, dessa dimensão internacional: através do galego, temos acesso a infinidade de recursos culturais, académicos, informativos e de lazer. Saber que com o galego podem se comunicar com 250 milhões de pessoas é uma “bomba de impacto moral” extremamente positivo.

A isso devemos engadir o acesso a produtos culturais de qualidade, tanto clássicos como contemporâneos. E em definitiva, a perceção de que com o galego estamos no mundo, sem precisar passar por um suposto quilómetro zero definido fora de nós.

Uma anedota rápida. Quando nas minhas aulas de galego, em 1º da ESO, falamos de sócio-linguística, sempre apresento aos meus estudantes o mesmo dilema: “Com o espanhol temos acesso a um universo de 400 milhões de falantes; com o galego, a um de 250 milhões. O que é melhor?” Quase sempre, a resposta desses nenos e nenas de 12 anos é a mesma: “É melhor 650”. Eles não querem renunciar ao espanhol, e não devemos pretender isso; mas estão abertos a adotar o galego como língua extensa e útil, utilizando um dos lemas da AGAL. Rachar esse estereótipo do galego como língua rural, de velhos e inservível além do Padornelo (e quem dixo que devemos sair, e que postos a fazê-lo, devemos sair polo Padornelo?!) é essencial e está nas nossas mãos.

Por onde deve caminhar o reintegracionismo para se tornar hegemónico socialmente?

Entendo o reintegracionismo como uma parte do movimento social que ao longo das últimas décadas se tem denominado normalizador. Como parte dum todo maior, penso que é desejável procurar pontos de convergência com outros agentes sociais e procurar a unidade de ação tanto no terreno mobilizador no sentido mais clássico como sobretodo no campo da construção de novas instituições sociais, e refiro-me principalmente à criação duma rede social de criação e difusão da cultura, das artes e da informação.

Desejaria que os nossos esforços se centrassem cada vez mais em fazer acontecer o que dizemos querer e cada vez menos em comprazer-nos com a crítica ao que não é feito; cada vez mais em que cada quem leve adiante as suas iniciativas e menos em pôr paus nas rodas dos demais; cada vez mais em abrir as portas e as janelas tanto ao mundo quanto aos nossos jovens criadores e menos em promover homenagens em circuito fechado. E sobretudo, desejaria que conseguíssemos, a partir da aplicação desses princípios, alargar o processo normalizador muito além do ensino e do âmbito das instituições políticas e culturais: o comércio, o lazer, os meios de comunicação, as novas tecnologias… são áreas estratégicas e nas quais ainda temos quase todo o caminho por andar.

Que visão tinhas da AGAL, que te motivou a te associares e que esperas da associação?

A visão que eu tinha da AGAL sempre deu um saldo positivo, mas nos últimos anos evoluiu muito favoravelmente: apreciei um processo de abertura, que considero já bem consolidado, uma vontade de não se limitar às fronteiras que em décadas anteriores constringiram o movimento reintegracionista, e penso que esse é um magnífico ponto de partida que deve ser apoiado.

Decidim associar-me há já dous anos, quando constatei que a crise do entramado cultural oficial e para-oficial entrou em fase terminal, ainda que suspeito que a agonia será prolongada e que haverá diversas tentativas de dar-lhe uma sobrevida que nem merece nem saberia usar mais que em benefício dos diversos clãs que as transformaram no seu meio de vida e no seu campo de batalha, todo ao mesmo tempo. Neste contexto, considero absolutamente crucial apoiar o tecido social capaz de dar o revezamento a essas instituições obsoletas, e creio que a AGAL deve assumir o papel de dinamizar e mesmo de liderar esse processo, que não consiste unicamente em mudar os nomes senão sobretodo em mudar os caminhos a trilhar.

Ninguém no seu perfeito juízo pode defender a continuidade duma política linguística e cultural que, trás 35 anos, se demonstrou incapaz de frear a descida de falantes e a perda da transmissão da língua, especialmente no âmbito urbano; de criar um consenso social para a recuperação do galego nas atividades económicas mais dinâmicas e com maior impacto na vida social; de mudar um panorama mediático e de lazer nos que a presença do galego é minoritária até níveis ridículos; de promover a galeguização de instituições como a Justiça ou as igrejas, notadamente a católica; de incorporar as novas gerações de criadoras e criadores aos circuitos culturais; nem de fazer da cultura galega um produto de circulação internacional, seja na lusofonia seja com caráter mais global. A pouco que pensarmos, veremos que a maioria dos exemplos de êxito chegaram a partir de iniciativas privadas, quando não mesmo individuais, e não da implicação das instituições políticas e culturais que deveriam promovê-los.

Como gostarias que fosse a “fotografia linguística” da Galiza em 2020?

Se me perguntasses polo ano 2050, diria que gostaria dum país de indivíduos multilingues, com o galego como língua socialmente hegemónica, um escrupuloso respeito polos direitos individuais dos falantes de espanhol e um intercâmbio cultural fluído com os países do nosso entorno linguístico (isso que costuma chamar-se lusofonia) e geográfico (Europa). Mas como a pergunta fica no 2020, seria feliz se daquela temos polo menos iniciado esse processo, que se resume em algo tão pouco inovador entre nós como abrir-nos ao mundo a partir de nós mesmos, sem pruridos identitários mas também sem renunciar ao que somos e donde vimos. Penso que precisamos duma nova Geração Nós, ainda que com um perfil menos académico e mais orientada à intervenção social, mais política – no sentido mais amplo, nobre e legítimo da palavra.

Se no ano 2020 tivermos algo semelhante a isso, e se a isso lhe engadimos um Governo Galego digno de tal nome, um tecido social mais extenso e diversificado territorial e ideologicamente, e também uma maior aproximação – que ultrapassa em muito a questão meramente ortográfica – aos países que falam a nossa língua, penso que daquela teremos as bases para reverter o processo de decadência que vimos sofrendo e para aspirar a conseguir para a língua galega e para todas as manifestações culturais que nela se expressam o nível de prestígio e de reconhecimento que merecem a nossa história, o talento das nossas gentes e em geral o povo galego.

Aspiro, em poucas palavras, a que o povo galego tenha orgulho do que é, em vez de renunciar à sua herdança para virar um apêndice ultra-periférico duma cultura que não tem o menor interesse em incorporar essa bagagem, senão só em anulá-la.

 

Conhecendo Filipe Diez

  • Um sítio web: muitos, mas se tenho que escolher só um, fico com o que mais leio para me manter informado, praza.gal
  • Um invento: todos os que têm que ver com a energia e com a difusão da cultura.
  • Uma música: “O que será (à flor da terra)”, de Milton e Chico; e “Senhas”, de Adriana Calcanhotto.
  • Um livro: As Rubaiyat, a Ilíada, qualquer tragédia de Sófocles ou de Shakespeare, a poesia completa de Pessoa…
  • Um facto histórico: no passado recente, a chegada de Nelson Mandela e Lula da Silva à presidência da África do Sul e do Brasil; num futuro mais ou menos próximo, desejaria que fosse a consecução duma República Galega independente.
  • Um prato na mesa: moqueca de camarão, acarajé, castanhas assadas, empanada, polvo à feira, goulash… e muitos outros, especialmente qualquer cousa que leve ou acompanhe patacas ou queijo.
  • Um desporto: para ver, futebol se joga o Deportivo; se não, dúzias doutros deportes; para jogar, futsal e futbolim (ou pebolim ou totô ou matraquilho ou…).
  • Um filme: Azul, de Kieslowski, foi o que mais vezes fum ver ao cinema; entre os clássicos, qualquer um de Lubitsch ou de Kazan; dentre os atuais, gosto dos filmes de Iñárritu e de Meirelles.
  • Uma maravilha: o clítoris.
  • Além de galego: amante da liberdade e da contradição.

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