Inês Gusman: “Eu gosto de contar a Galiza a quem chega de Portugal a partir daquilo que nos une”

Inês Gusman é bracarense e na atualidade reside em Santiago de Compostela onde faz o doutoramento na faculdade de Geografia e História. Chegou em 2012 impulsionada pelo seu pai, conhecedor e amante da Galiza. Valoriza a natureza e a cultura. O afeto que sente por Braga ou Santiago alimentam-se reciprocamente. No departamento de geografia da USC investiga sobre as identidades territoriais do Norte de Portugal. Para as ligações entre a Galiza e Portugal aposta no comboio e julga que o estigma que existe em Portugal em relação ao rural é um entrave sério à aproximação entre o galego e o português.

Inês Gusman

Do norte português chegaram várias tripulantes nos últimos meses. Que dirias a uma pessoa de Portugal a respeito da Galiza logo que chegasse aqui?

Penso que a Galiza é uma descoberta surpreendente para qualquer pessoa que venha de Portugal, especialmente se a soubermos contar. Isto porque o conhecimento que existe em Portugal sobre a Galiza é muito limitado. Por isso, passar a fronteira e encontrarmos tantas semelhanças é uma experiência extraordinária. A questão é que necessitamos de ajuda para ver estas semelhanças, já que quando passamos uma fronteira temos uma tendência para centrar a nossa atenção nas diferenças. Eu gosto de contar a Galiza a quem chega de Portugal a partir daquilo que nos une.

O ato de passar uma fronteira tem para nós, portugueses, um peso simbólico muito grande, ainda que hoje em dia o façamos de forma natural. Além disso, muito do que somos enquanto nação fez-se de costas voltadas para o Estado espanhol, e isto ainda está muito vivo na nossa sociedade. Para nós, independentemente da passagem fronteiriça que usamos, entrar em Espanha é entrar no estrangeiro que é culturalmente diferente de nós. Além de que, compreender a complexidade e diversidade cultural e identitária do Estado vizinho é para nós muito complicado – falo por experiência própria. Tudo isto funciona como uma espécie de filtro, que nos dificulta a perceção da diversidade dos territórios galegos.

Por isso, eu gosto especialmente de mostrar as semelhanças das manifestações culturais e linguísticas que desafiam esta ideia de estarmos no “estrangeiro”. É fascinante quando as pessoas se apercebem que determinadas palavras que ouviam da boca dos seus avós ainda estão vivas na Galiza. É normalmente com surpresa que portugueses se apercebem do quanto há de comum entre a música e as danças típicas do Minho ou de Trás-os-Montes e a de muitos territórios da Galiza. Gosto também de contar a história que temos em comum já que, infelizmente, está pouco presente na história oficial de Portugal e, é por isso, desconhecida para muitos portugueses. Nunca me esqueço de contar as várias formas de reconhecimento que existem na Galiza em relação à herança de Zeca Afonso – é algo que surpreende bastante as pessoas de Portugal. Mas não me esqueço também de mostrar os incríveis prazeres gastronómicos que a Galiza tem para oferecer, e as paisagens e patrimónios sublimes, materiais e imateriais, que há para conhecer.

“A nossa histórai em comúm está infelizmente pouco presente na história oficial de Portugal e é desconhecida para muitos portugueses”

Levas vários anos a residir em Santiago de Compostela. Dá para ter saudades?

Eu vim para Compostela para fazer um mestrado em turismo, no ano 2012, por influência do meu pai, que era um grande admirador das terras galegas, de Castelao e de Rosalía. Desde então já fiz diferentes coisas, ainda que sempre dentro do âmbito académico. No ano 2017 voltei para Braga para trabalhar numa associação de municípios, mas acabei por voltar à Galiza para fazer o doutoramento. Por isso tenho andado de um lado para o outro. Gosto de pensar que o meu território está entre Braga e Compostela, já que dentro dele me sinto em casa em qualquer ponto. Movimento-me com frequência entre as duas cidades, mas quando estou muito tempo numa é verdade que sinto saudades da outra. Por um lado, Braga é onde está a minha família e grande parte das minhas amizades, e onde está uma parte grande das minhas memórias. Por outro, Compostela é uma cidade bastante atrativa para pessoas que, como eu, valorizam o contacto com a natureza e com a cultura. Acho que, até agora, tenho conseguido conciliar o grande carinho que tenho por ambas.

Braga e Santiago são as tuas cidades de referência, com ligações históricas antigas. Dá para amar ambas por igual?

É curioso como a história que liga estas duas cidades é tão rica e tão longa, e ao mesmo tempo tão pouco contada. A consciência desta realidade chegou-me através do meu irmão, que sendo um grande interessado na história de Braga me foi dando a conhecer os vários acontecimentos históricos que ligam Braga a Compostela. Durante séculos estiveram sob um mesmo espaço político; primeiro com a presença do Império Romano e, posteriormente, dentro daquele que pode ser considerado o primeiro Estado da Europa, o Reino Suevo. A ligação acabou por desaparecer com a criação do reino de Portugal, muito incentivada pela rivalidade entre os poderes das igrejas de Braga e Santiago. Independentemente desta rivalidade histórica, a verdade é que neste vasto período, antes da separação, se foram desenvolvendo muitas das caraterísticas culturais que marcam os territórios que hoje são a Galiza e o Norte de Portugal. O mais forte é provavelmente o idioma que, para lá de todo o debate sobre o Galego e o Português, é inegável a quantidade de códigos de comunicação que as pessoas destes territórios partilham. Também a arquitetura popular, o património, a forma como a população ocupa o território e se relaciona com ele, a música e a dança. É surpreendente, como passados tantos séculos, continuam a existir semelhanças tão evidentes. Isto é de tal forma claro que a minha ida para Compostela me fez ter consciência da minha identidade cultural ligada ao Minho. Quando cheguei senti-me muito identificada com as foliadas, as festas, a terra, as comidas e as pessoas. Para compreender este sentimento de identificação precisei de aprofundar o meu conhecimento sobre a identidade da terra onde nasci e cresci. Assim, a minha resposta a esta pergunta é que o afeto por uma alimenta e reforça o afeto pela outra.

Estás a fazer o doutoramento no departamento de geografia da USC e investiga sobre as identidades territoriais do Norte de Portugal. Que estás a descobrir? Que nos gostavas de contar?

Só nos próximos meses é que vou iniciar o trabalho de campo, antes disso será difícil avançar com grandes conclusões. Por agora, o que me tem surpreendido na minha pesquisa bibliográfica é que, apesar dos anúncios feitos nas últimas décadas do século XX sobre o fim do território (dado ao aumento da(s) mobilidade(s) à escala mundial), este mantém-se um elemento chave na forma como nos organizamos enquanto sociedade. Parti para esta tese com a convicção de que, apesar da pressão que esta última fase do capitalismo tem exercido nas culturas locais, as identidades ligadas ao território mantêm-se vivas e úteis. Tenho reforçado esta convicção. Eu gosto de dar o exemplo das danças tradicionais galegas que, apesar de terem perdido parte da sua função original ligada ao mundo rural, fervilham hoje em alguns dos espaços urbanos da Galiza, especialmente entre os jovens. Na minha opinião mantêm-se vivas porque ganharam uma nova função: criar comunidades. Nós, apesar de dedicarmos tanto tempo a redes virtuais, continuamos a precisar de vínculos às comunidades físicas. Outra das componentes que me interessa abordar é o valor económico relevante que os elementos identitários do território podem ter. Este valor económico é bastante evidente se pensarmos em produtos como o vinho do Porto, os pimentos de Padrón/Padrão, etc. São produtos onde o selo geográfico é uma garantia de qualidade, e que dificilmente se conseguem reproduzir com as mesmas caraterísticas noutros locais. Por essa razão, manter e valorizar aquilo que é caraterístico dos territórios é uma necessidade cultural, mas também uma forma de valorização económica que não devemos ignorar.

“Na minha opinião as danças tradicionais galegas mantêm-se vivas porque ganharam uma nova função: criar comunidades”

Como valorizarias as comunicações terrestres e áreas entre a Galiza e o Norte de Portugal? Que está a faltar aí?

É curioso como após tantos anos de programas de cooperação transfronteiriça entre a Galiza e o Norte de Portugal, e apesar da existência de várias figuras de cooperação, as comunicações terrestres continuam a não dar resposta às necessidades destes territórios. Apesar de as passagens fronteiriças entre a Galiza e o Norte de Portugal serem aquelas que registam o maior fluxo diário de veículos entre os dois estados – sobretudo entre Valença e Tui – continuamos sem ter uma oferta de transporte público decente. Não consigo entender como é que apesar dos elevados fluxos de atividade económica, de trabalhadores e de estudantes entre os dois lados do rio Minho, continuamos com ligações tão deficientes.

Ainda assim, penso que se dispensa a ligação aérea, e que se deveria melhorar o serviço ferroviário. Lembro-me da primeira vez que fiz a viagem entre Compostela e Braga, de comboio, em 2013. Fiquei chocada com o estado do serviço. Ainda de algumas coisas tenham mudado desde então, o comboio continua a não ser uma opção viável em termos de tempo e de dinheiro para quem se movimenta frequentemente. Já para não falar no facto desta ligação estar recorrentemente nas notícias por problemas técnicos que põem em causa a segurança das pessoas que viajam, o que é muito grave. Uma modernização do serviço ferroviário seria a forma das pessoas deixarem de precisar do veículo privado para se moverem já que, com os avanços existentes atualmente, é possível ligar os principais pontos da Galiza e do Norte de Portugal de uma forma rápida e prática.

Como foi a tua descoberta do lado escuro da norma?

Eu conheci a Agal talvez no ano 2016, numa feira do livro em frente ao Arco de Mazarelos em Compostela. Chamou-me muito a atenção o projeto, porque embora já soubesse algo sobre o reintegracionismo, não sabia da existência de uma organização como a Agal, com tantos âmbitos de atuação. Desde então tenho tentado estar a par das atividades que direta ou indiretamente estão ligadas à Agal. Sendo eu bastante apaixonada pela ligação entre a Galiza e os territórios do Norte de Portugal, tento conhecer e seguir os projetos e estruturas que cultivam a aproximação entre ambos. É realmente surpreendente e comovente ver a quantidade de pessoas que se movem por esta causa, sobretudo do lado galego. Dentro destas, penso que as pessoas que estão envolvidas na Agal têm feito um trabalho fundamental de recolha e reconhecimento patrimonial, organização de eventos e de difusão de informação que são basilares para que se cultive e mantenham as proximidades culturais.

“Quando conheci a Agal chamou-me muito a atenção. É realmente surprendente e comovente ver a quantidade de pessoas que se movem por esta causa, sobretudo do lado galego”

Em geral, a pessoa comum em Portugal desconhece a realidade de língua da Galiza. Quais achas que seriam as formas mais eficazes para ir modificando este estado de cousas?

Parece-me que há bastante trabalho a ser feito, em vários âmbitos e a várias escalas. No caso da língua, acho que a principal dificuldade é o facto de que alguém que fale português e que não conheça o castelhano, dificilmente reconhece a diferença entre este e o galego, e dificilmente compreende a proximidade entre o galego e o português. Isto deve-se ao facto de que os sons do galego falado serem muito semelhantes aos que ouvimos do castelhano. No meu caso, precisei de conhecer o castelhano e o galego para compreender quão parecido o galego é ao português. Há outra questão relacionada com o desenvolvimento da própria língua portuguesa, que é o facto de ter vindo a perder bastantes variações locais/regionais. Em Portugal cultiva-se a ideia de que é bom não ter sotaque, e diz-se que o português mais correto é o de Coimbra – uma ideia bastante absurda, na minha opinião. Como resultado, embora seja possível distinguir uma pessoa do Alentejo de uma pessoa do Minho pela forma de falar, muitas expressões e formas de falar que eram muito próximas do galego acabaram por desaparecer. A palavra “botar” é um bom exemplo: está muito pouco presente no meio urbano e é associada a uma ruralidade que queremos afastar, infelizmente. O estigma que existe em Portugal em relação ao rural é, a meu ver, outro dos entraves à aproximação entre o galego e o português, já que muitas das semelhanças permanecem especialmente vivas nos territórios mais rurais. A via que me parece mais eficaz para reverter isto, é insistir na ideia de que uma pessoa que fala galego e uma pessoa que fala português se conseguem comunicar perfeitamente sem ter que alterar os seus códigos de comunicação base. Se chegamos à Galiza a falar português e nos tentam responder em português, perde-se a noção da proximidade.

De uma forma mais abrangente, falando da proximidade cultural e histórica entre estes territórios, penso que o principal entrave é o facto de raramente se assumir a existência de uma diversidade cultural dentro de Portugal. O discurso da unidade nacional portuguesa é tão forte que deixa pouco espaço para o reconhecimento de semelhanças culturais para lá das fronteiras políticas. Acho que até mesmo as iniciativas que de dentro da Galiza tentam uma aproximação a Portugal se ignora esta diversidade. É preciso entender que as semelhanças culturais entre o Minho ou Trás-os-Montes e a Galiza não são as mesmas que entre o Alentejo, Algarve, ou mesmo Lisboa e a Galiza. Os eixos que ligam a Galiza aos territórios de Portugal não são os mesmos em todas as regiões, e sinto que a norte do rio Minho isto é muitas vezes esquecido.

Como gostarias que fosse a “fotografia linguística” das relações entre a sociedade portuguesa e galega em 2040?

Gostaria que em 2040 as fronteiras entre as duas sociedades fossem mais ténues do que são hoje, a todos os níveis. Penso que nos últimos anos se têm dado passos importantes para isso e que, estarmos dentro da União Europeia foi fundamental para retomarmos os fluxos culturais, económicos e sociais entre os dois lados do Minho. Mas ainda há muito trabalho para fazer. Gostaria especialmente que houvesse a consciência, nos dois lados da fronteira, da facilidade de comunicação que existe entre falantes de galego e de português e que, a partir disso, pudéssemos recuperar patrimónios comuns esquecidos ou pouco valorizados. Gostaria também deixar de ver pessoas que ocupam quadros institucionais, especialmente de Portugal, a demonstrar um elevado nível de desconhecimento quando falam das relações entre as duas sociedades. Gostaria, sobretudo, que entendêssemos que as relações galaico-portuguesas são fundamentais para valorizarmos os territórios de ambos os lados.

foto perfil Inês Gusman

Conhecendo Inês Gusman

Um invento: Máquina fotográfica

Uma música: Sabiá de Chico Buarque

Um livro: A Caverna de José Saramago

Um facto histórico: Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974

Um prato na mesa: Arroz fresco de [tomate, polvo, tamboril, frango pica no chão, etc.]

Um desporto: Natação

Um filme: Cinema Paraíso

Uma maravilha: O Gerês

Além de portuguesa: minhota sem fronteiras

Deixe um comentário