Paulo Soriano é itabunense ou grapiúna, portanto, do outro lado do Atlântico. Contactou com a nossa variedade graças a um galego que detinha um bar no centro do Salvador. Especialista em narrativa de terror e ficção científica é responsável por vários sites a este respeito e sempre convidou, e convida, à participação galega. Como estratégia, defende o aprofundamento das relações com as Academias de Letra dos demais países lusófonos. Em 2050, gostaria que os povos galego e brasileiro se sentissem integrantes de uma mesma família.
Paulo Soriano nasceu em Itabuna, Estado da Bahia e mora em Salvador. Como soubeste da existência da Galiza e da sua/nossa língua?
A Geografia em geral e os mapas em particular sempre me fascinaram. Assim, quando muito jovem, eu já tinha conhecimento de diversas regiões da Península Ibérica, dentre as quais a Galiza.
Chegou-me muito cedo, também, a lição de que na Galiza se falava o galego, “o idioma que mais se assemelha ao português”, como ainda se ensina hoje em dia.
Sempre estive curioso em saber como seria esse idioma, mas foi somente na década de noventa que tive o primeiro contato com o galego escrito.
Havia um senhor galego, de saudosa memória, que mantinha no centro de Salvador um bar e restaurante. Certa feita, estava eu em seu estabelecimento, quando vi sobre o balcão um jornal da Galiza. Era escrito em espanhol, mas havia um artigo redigido em galego. Aquilo para mim foi um grande achado. Percebi, de imediato, que o que se chamava galego nada mais era que o português escrito à maneira castelhana. Português estranhamente vertido à ortografia espanhola, mas essencial e induvidosamente português. Fiquei deveras interessado na Galiza e sua língua, mas apenas com o avento da Internet pude aprender um pouco mais. A descoberta do Portal Galego da Língua, mantido pela Agal, abriu-me todo um mundo a ser explorado.
Percebi, de imediato, que o que se chamava galego nada mais era que o português escrito à maneira castelhana. Português estranhamente vertido à ortografia espanhola, mas essencial e induvidosamente português.
Vejam o quanto eu era ignorante. O senhor Basílio — assim se chamava o venerável comerciante galego — nunca deixou de falar galego. Hoje eu bem sei disto. Mas, na época, pensava que ele aprendera o português no Brasil e o falava com sotaque estrangeiro, como o faria, por exemplo, um argentino, um francês ou um italiano. Nada disto. Falava ele o galego que aprendera na Galiza; ou seja, a mesma língua do país que o acolhera, mas com a entoação típica de sua região. Em seu galego, falava o meu português. E, como o meu amigo lisboeta Nuno Soeiro, o Sr. Basílio nunca perdeu o sotaque de origem, apesar de viver há muitos anos no Brasil. Em suma: eu sempre ouvira, dos lábios do venerável Sr. Basílio, o galego, mas não sabia disto… Contudo, em minha ingenuidade, ainda me indagava sobre o que, sem sabê-lo, eu já sabia: “como será o galego?”.
Em que medida vigora no Brasil que o português nasceu na Lusitânia e não no reino da Galiza?
Contam-se nos dedos as pessoas que sabem que a língua que se fala no Brasil nasceu não em Portugal, mas na Galiza. Até mesmo pessoas de boa formação cultural ficam supressas quando lhes falo a respeito da real origem da língua portuguesa. Nos livros didáticos, há, ordinariamente, vagas referências ao galego-português medievo. E muitos outros tangenciam completamente o assunto. Por conseguinte, é generalizada a crença de que a nossa língua brotou e se desenvolveu em Portugal, antes de migrar e acomodar-se em nossas terras. Até mesmo pessoas de nacionalidade portuguesa conservam essa errônea concepção, como já tive a oportunidade de constatar pessoalmente. Já outros portugueses, como meu camarada Nuno Soeiro, dizem-me, simplesmente: galego e português são a mesma coisa.
São Tomé e Príncipe é um país insular africano com 1.000 km2. Ora, o facto de o português ser língua oficial ajuda a que seja conhecido nas sociedades de expressão portuguesa. É possível, sem essa oficialidade, que a Galiza seja conhecida no Brasil?
A rigor, não há diferença ontológica entre o moldavo e o romeno; entre o flamengo e o holandês; entre o luxemburguês e o alemão; entre o galego e o português. O “galego” é apenas o nome que se dá à língua portuguesa na forma em que é falada na Galiza. Leis e constituições não podem alterar esta realidade.
Em assim sendo, não há dúvida de que seria muito bom que o português fosse reconhecido como a língua oficial da Galiza. Mas, enquanto perdurar a dicotomia ilusória, enquanto permanecer o galego com o status de idioma autônomo, distinto do português, trabalhemos com o que dispomos. E o que dispomos já consubstancia um excelente material.
A rigor, não há diferença ontológica entre o moldavo e o romeno; entre o flamengo e o holandês; entre o luxemburguês e o alemão; entre o galego e o português. O “galego” é apenas o nome que se dá à língua portuguesa na forma em que é falada na Galiza.
O simples fato de partilharem Galiza e Brasil o mesmo idioma — apesar da postura ideológica oficial que pretende negar esta evidente realidade — já se constitui, para a gente galega, numa grande vantagem. Já há um canal natural por onde a Galiza pode transitar e fazer-se conhecer no Brasil. Tudo depende dos esforços dos galegos e galegas de um lado, e da receptividade do povo brasileiro do outro.
Paulo Soriano é especialista em narrativa de terror e ficção científica. De facto, organizou uma coletânea de contos com a língua de pano de fundo, “A Voz dos Mundos” e mantém na Internet o sítio Contos de Terror. É fácil aterrar-se em 2021? As narrativas antigas conseguem ainda prender as pessoas leitoras?
Antes de tudo, não nos esqueçamos que Valentim Fagim foi, também, um dos organizadores da coletânea “A Voz dos Mundos”. E é bom rememorar que, com a sua cooperação, igualmente pude organizar a coletânea “Mestres do Terror”, publicada na Galiza pela Edizer, sob a coordenação de Rodrigo Vizcaino.
Mas vamos à resposta.
Certa vez, Alexandre Dumas (1802 – 1870) escreveu: “O Nodier bibliófilo descobria obras-primas ignoradas, que ele exumava dos túmulos das bibliotecas” (tradução de Heloisa Pietro). Pois bem. Seguindo os passos de Charles Nodier (1780 – 1844) — escritor francês, autor de interessantes obras no domínio do fantástico —, tenho me dedicado, há alguns anos, a fazer o que chamo, jocosamente, de “arqueologia literária”.
Essa prazenteira atividade, que exige muita pesquisa, paciência e dedicação — e uma boa dose de sorte, é claro! — tem-me rendido ótimos resultados. Consegui, por exemplo, “exumar”, de uma revista de 1839, o conto “A Missa do Galo”, escrita por Maciel da Costa, uma das primeiras obras de ficção fantástica publicada no Brasil e a primeira narrativa genuinamente brasileira de terror constante de um periódico nacional. Uma verdadeira preciosidade. Em breve, pretendo divulgar o primeiro conto fantástico publicado num periódico brasileiro, “Herminona”, uma adaptação — como descobri após algumas pesquisas — de uma passagem de um romance do escritor escocês Walter Scott (1771 – 1832).
Em breve, pretendo divulgar o primeiro conto fantástico publicado num periódico brasileiro, “Herminona”, uma adaptação — como descobri após algumas pesquisas — de uma passagem de um romance do escritor escocês Walter Scott (1771 – 1832).
São, assim, obras curiosas, repletas de história, e que estariam esquecidas se pessoas como eu, Iba Mendes e Sérgio Barcelos Ximenes não se interessassem em resgatá-las de seus revelhos sepulcros e trazê-las de volta à vida e à luz.
No sítio Contos de Terror — modéstia à parte, o mais acessado repositório de literatura fantástica em português, com uma média de 1300 visitas diárias —, as histórias mais lidas são as que têm mais de uma centena de anos. Portanto, são justamente os contos clássicos antigos — como, por exemplo, os de Charles Dickens (1812-1870), Edgar Allan Pöe (1809 – 1849) e Guy de Maupassant (1850 – 1893) — os que mais atraem a atenção e logram o apreço do público leitor de nossos dias. E o nosso sítio é um bom indicativo de que há, sim, espaço para a literatura de terror, horror e fantasia nos tempos hodiernos. Se bem que — é forçoso dizê-lo —, com o horror suscitado pela pandemia que vivenciamos — mormente no Brasil —, a realidade, em si e de per si, já é sobremodo aterradora.
A tua paixão pela narrativa é partilhada neste PGL numa secção onde te debruças sobre autores e obras permitindo ligar diferentes realidades culturais. Conhecemo-nos pouco?
Muito pouco, infelizmente. Mas é preciso gizar que, em razão do sítio que mantenho na Internet, pessoas do Brasil passaram a visitar o PGL, com o que puderam assimilar algo sobre a Galiza e sua língua. Espero que a recíproca tenha sido verdadeira: que, a partir dos meus artigos no PGL, a gente da Galiza haja se interessado pelo que se passa no lado de cá do Atlântico. Creio, assim, que a Internet é uma potente ferramenta de integração cultural entre os mais diversos povos do mundo, sobretudo os que compartilham o mesmo idioma, como é o caso do Brasil e a Galiza.
Ademais, o bom é que o sítio Contos de Terror conta com colaborações oriundas não apenas do Brasil, Galiza e Portugal, mas com as de autoras e autores modernos de outras nações da Península Ibérica, da África e das Américas. Diferentes realidades culturais, pois, convivem harmonicamente em nossas páginas.
Aproveito a oportunidade para divulgar o livro do escritor brasileiro J. Sobota denominado “Galiza Terra de Meigas – Lendas & Tradições Galegas com anotações sobre tradições galaicas”, recentemente publicado no Brasil, mas também disponível na Galiza, no formato de e-livro, pela Urko. Soube dele por intermédio do fidelíssimo amigo galego José Manuel Barbosa. Sem dúvida, um ótimo contributo à divulgação da cultura galega no Brasil e no mundo.
Aos poucos, portanto, vamo-nos conhecendo melhor.
Por onde julgas que deveria transitar a estratégia reintegracionismo para se dar a conhecer fora da Galiza?
Tenhamos sempre em mente o que escreveu Afonso Castelão (1886 – 1950): “nenhuma outra nacionalidade espanhola — nem a Catalunha, nem Euscádi — oferece um porvir tão extenso como a Galiza, quando pensamos que a nossa língua serve para comunicar-nos com mais de setenta milhões de almas”. Hoje, somos mais de 200 milhões.
Assim, sob o ponto de vista estratégico, sou da opinião — com os olhos de quem “vê de fora” o problema galego — de que é hora de transcender (obviamente sem abandoná-las) as querelas internas e buscar o reconhecimento da identidade linguística galego-portuguesa no plano externo, internacional. A divulgação da literatura galega, inclusive a que se produz modernamente, para além das fronteiras pátrias é um passo fundamental neste mister.
No Brasil, por exemplo, há várias publicações, físicas e virtuais, que aceitam a participação de autores domiciliados fora do Brasil. Há, ainda, seleções e concursos literários, de índole internacional, que estimulam a produção literária de autores estrangeiros de língua portuguesa. Consultem-se, por exemplo, os sítios Concursos Literário e Seleções Literárias. Vale a pena pesquisá-los periodicamente. Ocasionalmente, há editais atraentes. Num concurso literário de que participei (Prêmio Prof. Mário Clímaco), por exemplo, a vencedora do certame, na modalidade crônica, no nível internacional, foi uma cidadã do Canadá, país onde o português é falado, como primeira língua, por mais de duzentas mil pessoas.
No Brasil, por exemplo, há várias publicações, físicas e virtuais, que aceitam a participação de autores domiciliados fora do Brasil. Há, ainda, seleções e concursos literários, de índole internacional, que estimulam a produção literária de autores estrangeiros de língua portuguesa.
Aproveito o ensejo para instar autoras e autores galegos a que colaborem com os sítios que mantenho na Internet: Contos de Terror (especializado em literatura fantástica) e Litteratus (dedicado à publicação de narrativas curtas dos mais diversos gêneros). Publicando em nossos sítios, a gente da Galiza não apenas divulgará a sua produção literária no Brasil e demais países lusófonos, como fará visível, a um grande público lusofalante, a realidade de que o português e o galego são a mesma língua. Se houver interesse, basta escrever-me: paulosoriano@gmail.com.
É, pois, chegada a hora da expansão, de fazer-se reconhecida a Galiza lusófona no mundo inteiro. E as pessoas que se dedicam à literatura podem contribuir imensamente na consecução deste objetivo. Não nos esqueçamos jamais de uma verdade concebida por Afonso Castelão (1886 – 1950) e propalada por Carvalho Calero (1819 – 1990): o galgo é extenso e útil.
Outra estratégia, que reputo interessante, consiste no aprofundamento das relações com as Academias de Letra dos demais países lusófonos. Creio, portanto, que é um caminho viável a intensificação do diálogo com as Academias das demais nações integrantes da CPLP — Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Elas, embora elas não sejam entidades oficiais, têm um imenso e inexaurível poder de persuasão, além de grande autoridade em seus posicionamentos e deliberações.
Que te motivou a te tornar sócio da Agal e que esperas do trabalho da associação?
Foi com imensa alegria que vi a oportunidade de tornar-me sócio da Agal. Era um desejo que mantinha há muitos anos, embora jamais o houvesse externado a quem quer que seja, nem mesmo às pessoas de minha intimidade na Galiza. Mas o desejava com ardor, conquanto em segredo. Quando o filólogo e ensaísta Valentim Fagim participou-me dessa possibilidade, exultei. É mais um antigo sonho que se realiza. Estar ao lado de tanta gente boa, tanta gente querida, de pessoas que sempre me receberam de braços abertos, e cujos ideais assemelham-se aos meus, é-me, sem dúvida, uma grande honra e uma imensa felicidade.
Estar ao lado de tanta gente boa, tanta gente querida, de pessoas que sempre me receberam de braços abertos, e cujos ideais assemelham-se aos meus, é-me, sem dúvida, uma grande honra e uma imensa felicidade.
Creio, até, que essa abertura a sócios domiciliados fora da Galiza caminha de par com o meu pensamento: sem abdicar de suas bandeiras internas, que busquem os galegos a projeção da Galiza lusófona no exterior e o aprofundamento da interação entre a Galiza e as demais nações lusófonas, tendo-se a língua como a amálgama comum.
Espero que a Associação continue firme e forte no seu incondicional e indeclinável propósito de defesa do galego na Galiza e na difusão da língua e cultura galegas no exterior. De minha parte, estou à disposição da Associação para colaborar com ela no que me possível.
Imagina a Galiza e o Brasil em 2050. Como gostarias que fosse o conhecimento mútuo nessa altura?
Não estarei vivo para vê-lo, mas gostaria que os povos galego e brasileiro se sentissem, em 2050, integrantes de uma mesma família. Todos ligados pela língua e ancestralidade comuns, pelo afeto mútuo e pelo intenso conhecimento recíproco. Simples assim.
Conhecendo Paulo Soriano:
Um sítio web: estraviz.org
Um invento: a vacina, de Edward Janner, de gloriosa memória.
Uma música: “Construção”, de Chico Buarque de Holanda.
Um livro: “Pet Sematary”, de Stephen King.
Um facto histórico: Abolição da escravatura no Brasil (1888).
Um prato na mesa: Moqueca de camarão.
Um desporto: Futebol (pena que nunca soube jogá-lo).
Um filme: “A Guerra do Fogo”, de Jean-Jacques Annaud, baseado numa história de J.-H. Rosny aîné.
Uma maravilha: O cânion do Sil, visto dum miradouro.
Além de brasileiro/a: Humano, inexoravelmente humano.