Jesus Alpiste é um galego nascido em Madri. Uma biblioteca enorme ajudou-o a agir como galego. Estudou filologia românica e acha fascinante a passagem do latim para as línguas românicas. Após ter trabalhado com angolanos, julga que o mata-bicho não é lá muito diferente do almorço. Os seus primeiros autores reintegracionistas foram Carvalho Calero, Rodrigues Lapa e Montero Santalha. Para a revolução copernicana do reintegracionismo é fundamental os média e o ensino. Aspira a uma Galiza onde nãos seja preciso ser ativista para querer fazer a vida em galego.
Jesus Alpiste nasceu em Madri mas a mãe e os avós são galegos, de Santa Cruz de Arrabaldo, perto de Ourense. Como se vive a galeguidade neste contexto?
Até os quatorze anos apenas vivi a galeguidade como um facto de tipo familiar, mas, ao ser filho de galega, pude participar num acampamento de verão organizado pola Junta e lá foi onde acordou aquela consciência adormecida. A partir daquele momento comecei a agir como galego, ajudado pola enorme biblioteca sobre questões à volta da Galiza que possuía a minha avó. Como em Madri não tinha muita ocasião para falar em galego (fora os meus avós, que passavam temporadas cá), a opção foi começar a “pensar em galego” e a escrever. Com efeito, lembro a primeira vez que escrevi em galego, após aquele acampamento de verão. Ainda conservo esse texto: as estruturas estavam muito bem assentes, só o léxico é onde havia castelhanismos, pois o galego que eu mamara fora, fundamentalmente, o galego sem “roçar” dos avós.
Existe um contacto e alguma organização entre a comunidade galega na cidade onde moras?
Há alguns anos, nomeadamente nos tempos da faculdade, sim tive contacto com a comunidade galega consciente de si própria através da Escola Oficial de Idiomas, nalguns atos da livraria Sargadelos ou na própria Faculdade de Filologia, onde existia uma secção de galego (com pouco contacto com a secção de português, infelizmente). Mesmo chegou a haver uma certa presença da Mesa pola Normalização Linguística. Faziam-se alguns atos polo Dia das Letras, etc. Mas hoje o meu contacto com a galeguidade produz-se, para além das estadias na Galiza, através da internet.
Estudaste filologia românica. Em que medida esta tua formação incide na tua forma de observar a sociedade galega?
Do ponto de vista linguístico, um dos momentos mais apaixonantes na história da passagem do latim para as línguas românicas é o nascimento delas, na Idade Média. Se mergulharmos nos textos medievais do antigo espaço da Gallaecia, dá para ver a identidade quase absoluta das formas de aquém e além-Minho. Aliás, se olharmos a ortografia “oficial” do galego e a compararmos com as das outras línguas romances, dá nas vistas o afastamento das tendências das línguas irmãs com esse xis hiperabundante que carateriza graficamente a norma ILG-RAG.
Do ponto de vista social, o que vejo como filólogo é que o processo de substituição linguística na Galiza está mui avançado e o facto de o nosso galego-português ser uma língua próxima filogeneticamente com o castelhano não ajuda a identificar facilmente essas interferências. Além disso, este processo também faz com que o galego seja vivido como uma “meio-língua”. Eis onde o reintegracionismo pode ajudar a vivenciarmos o galego como uma língua, não só completa nos seus registos e usos, mas como uma língua que nos conecta com o mundo.
Do ponto de vista social, o que vejo como filólogo é que o processo de substituição linguística na Galiza está mui avançado e o facto de o nosso galego-português ser uma língua próxima filogeneticamente com o castelhano não ajuda a identificar facilmente essas interferências. Além disso, este processo também faz com que o galego seja vivido como uma “meio-língua”. Eis onde o reintegracionismo pode ajudar a vivenciarmos o galego como uma língua, não só completa nos seus registos e usos, mas como uma língua que nos conecta com o mundo.
Na Galiza há duas estratégias para a nossa língua caraterizadas polo relacionamento com as variedades portuguesa e brasileira. Qual é a tua visão ao respeito?
Se bem que acho a proposta binormativista ser uma ótima focagem para o momento atual que vive a nossa língua na Galiza, pois ajuda a aproveitarmos bem as forças, penso que a única solução no longo prazo pode vir da mão de reconhecermos que o galego é internacional. Se entendermos que a nossa língua é aquela que no mundo é conhecida sob o nome de português, podemos multiplicar os seus usos através de inúmeros espaços de comunicação. Do ponto de vista pessoal, depois de estudar a norma lusitana do português durante um ano, estive a trabalhar num curso que preparava pessoas angolanas para o ingresso no sistema universitário espanhol. Eles, no exame de segunda língua, apresentavam-se à prova de português e a minha tarefa era ajudá-los em questões de redação, ortografia… Após um primeiro momento de estranheza mútua polos nossos sotaques, chegamos à conclusão, feliz, de o mata-bicho não ser lá muito diferente do almorço, na certa.
Se bem que acho a proposta binormativista ser uma ótima focagem para o momento atual que vive a nossa língua na Galiza, pois ajuda a aproveitarmos bem as forças, penso que a única solução no longo prazo pode vir da mão de reconhecermos que o galego é internacional.
Lembras como foram os teus primeiros contactos com a estratégia internacional?
O meu contacto com a internacionalidade da nossa língua provém da minha infância. Tive a imensa sorte de ter tido contacto com pessoas do norte de Portugal na Galiza desde que tenho memória e ao longo de muitos anos. Sempre senti aquelas falas e as dos meus avós como praticamente a mesma. Penso que, ao não ter tido contacto com a postura oficial que na Galiza vigora à respeito da língua (fora a TVG e o Xabarín Club nas férias e outras estadias na Galiza, -risos-), não desenvolvi esse preconceito a respeito do relacionamento das falas galegas e as portuguesas. Mesmo do ponto de vista familiar, a conjuntura estava favorável ao próprio reintegracionismo. Com efeito, lembro dous factos fundamentais. A minha avó era uma pessoa religiosa e tinha grande devoção por Santo António, santo nascido em Lisboa. Ela também gostava de escrever pequenas poesias (algumas delas em galego, aliás) e tinha uma dedicada ao tal santo. Um dos versos vinha a dizer “sei que tu me entendes porque falavas na língua em que eu che falo”. É uma lembrança da infância. Tempo depois, quando andava a estudar o meu curso de filologia românica, um meu tio perguntou-me polo italiano e o meu avô disse: “O italiano soa semelhante ao galego”. O meu tio disse que achava que não, que o galego com o que mais se parecia era com o português. Perante isso, o meu avô sentenciou: “Homem, o galego é português de tudo!”.
Fora estas histórias familiares, o meu primeiro contacto com o reintegracionismo produzira-se através da leitura juvenil de propaganda política. Dum ponto de vista mais consciente, a aproximação às teses linguísticas veio da leitura de Do galego e da Galiza de Carvalho Calero, os Estudos galego-portugueses de Rodrigues Lapa e um método de aprendizagem do galego reintegrado de Montero Santalha que topei na biblioteca da minha faculdade. Se bem que a minha postura linguística nunca fora hostil ao reintegracionismo, a passagem para a escrita reintegrada veio da mão destes textos e aos poucos.
Na perspetiva que dá a distância, que caminhos achas mais frutíferos para avançarmos socialmente?
Penso que o caminho a percorrer para irmos à frente é fazer pedagogia de base com o intuito de mostrar à gente que é possível (e mesmo fácil!) tirarmos proveito desta vantagem imensa que temos como povo. Porém, é preciso tombar preconceitos que isolam a nossa língua em quatro províncias espanholas. Orgulhemo-nos, então, de falar uma língua partilhada com mais de duzentos milhões de pessoas e naturalizemos este facto! Para isto, é fundamental ganharmos dous aliados para esta revolução copernicana: os média e o ensino.
É preciso tombar preconceitos que isolam a nossa língua em quatro províncias espanholas. Orgulhemo-nos, então, de falar uma língua partilhada com mais de duzentos milhões de pessoas e naturalizemos este facto! Para isto, é fundamental ganharmos dous aliados para esta revolução copernicana: os média e o ensino.
Que te motivou para te tornares sócio da Agal e que expetativas tens da associação?
A pesar de conhecer a Agal desde há muito tempo, foi a focagem dos últimos anos, mais afastada do enfoque filológico e academicista, o que me levou a querer fazer parte do projeto. Penso que é muito mais fácil aproximar-se da sociedade dessa maneira do que com sisudas reflexões linguísticas, com certeza. Espero poder fazer um pequeno contributo para o labor de espalhamento das vantagens da proposta reintegracionista na sociedade, que de maneira ótima está a fazer a associação.
Imagina a data de 2040, mais uma geração. Como gostarias que fosse a “fotografia lingüística” nessa altura?
Uma Galiza onde as crianças berrem e brinquem em galego e, ao mesmo tempo, assistam filmes infantis do Brasil. Uma Galiza onde a gente nova ouça músicas de Portugal ou de Angola. Uma Galiza onde não tenhas que ser necessariamente um ativista para fazer toda a tua vida em galego. E uma Galiza onde não aconteça o que, desde há alguns anos, me acontece cada vez com mais frequência quando torno à aldeia depois de ir fazer gestões à minha caríssima cidade de Ourense: “Manda caralho! Falei constantemente em galego e quase todo o mundo me respondeu em castelhano lá baixo! E sou eu o madrileno!”.
Conhecendo Jesus Alpiste
Um sítio web: www.nosdiario.gal.
Um invento: qualquer soporte, quer físico, quer digital, para a música.
Uma música: “A forest”, de The Cure.
Um livro: O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati
Um facto histórico: a criação do Reino Suevo da Galécia.
Um prato na mesa: sopa. Do tipo que for!
Um desporto: natação.
Um filme: Trainspotting.
Uma maravilha: a névoa num carreiro no outono.
Além de galego: cidadão da República da Clave de Fá (toco baixo).